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Depoimento inédito de Erasmo Dias revela detalhes do caso Rota 66: foi uma investigação fraudada

Então secretário da Segurança Pública, coronel confessa que policiais armaram tiroteio com rapazes metralhados em 1975, nos Jardins

Coronel Erasmo Dias, ex-secretário da Segurança de São Paulo, em foto de 2007
Coronel Erasmo Dias, ex-secretário da Segurança de São Paulo, em foto de 2007(Niels Andreas/Estadão Conteúdo)
Em 23 de abril de 1975, três jovens desarmados foram perseguidos, metralhados e mortos nos Jardins, bairro nobre de São Paulo, porque acabaram confundidos com bandidos perigosos. Ao perceber o erro, os homens das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) "enrustiram" maconha e armas no Fusca dirigido pelos rapazes. Quarenta anos depois, é a voz do homem que comandava a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o coronel Antônio Erasmo Dias, morto em janeiro de 2010, que conta essa história e dá um testemunho inédito sobre um dos mais famosos episódios de violência policial, o caso Rota 66. A conclusão: Foi uma investigação fraudada.
Símbolo de um tempo - os anos do regime militar -, Erasmo Dias esteve à frente da secretaria de 1974 a 1977. Mandava prender e soltar. Impulsivo e explosivo, desde que lhe parecesse justo, acobertava seus subordinados civis e militares. Dava prêmios a policiais que caçavam e matavam bandidos. Reformou a Segurança Pública paulista, criando uma estrutura até hoje existente. Alto, magro e de olhos azuis, quem o conheceu nos anos 1970 diz ser difícil imaginar o quanto ele foi de fato poderoso.
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Erasmo chegou ao gabinete, na Câmara Municipal de São Paulo, às 9 horas. Era julho de 2004. Em poucos meses terminaria seu último mandato parlamentar. O homem cumprimentou um assessor, apanhou papéis e sentou na cadeira de couro do gabinete. A conversa ia durar quase duas horas. Tudo terminado, fez um pedido depois de o gravador ser desligado: que a entrevista fosse publicada somente depois de ele morrer - o que aconteceria em 4 de janeiro de 2010.
Sentia-se, década após década, perseguido pelo protesto dos estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que, em 1987, mandaram-lhe balas e uma coroa de flores no 10º aniversário de sua ação mais controversa à frente da secretaria: a invasão do câmpus Monte Alegre da universidade, em 22 de setembro de 1977. A ação pretendia impedir um encontro nacional, que buscava reorganizar o movimento estudantil no País - a União Nacional dos Estudantes (UNE), posta na ilegalidade pelo regime em 1964.
A memória de Erasmo o levou ao dia em que os três jovens - Francisco Nogueira Noronha, José Augusto Diniz Junqueira e Carlos Ignácio Rodrigues Medeiros - foram mortos nos Jardins. "O Rota 66 foi o primeiro episódio drástico que eu enfrentei."
Conta pra mim - Naquele 23 de abril de 1975, quando Erasmo chegou ao 15º Distrito Policial, nos Jardins, a guarnição 66 da Rota havia acabado de estacionar. O secretário foi para a sala do delegado de plantão. Em cima da mesa, estavam as armas dos cinco PMs - duas submetralhadoras calibre 9 mm e cinco revólveres calibre 38.
Três dos cinco PMs da Rota 66 estavam ali. "Conta pra mim o que houve", disse o secretário aos policiais. O relato que se seguiu é o conhecido: os rapazes fugiram, a perseguição se estendeu por diversas ruas. Os policiais, dependurados na janela da Veraneio, atiravam para responder aos disparos dos jovens, que bateram o carro na esquina das Ruas Alasca e Argentina. Os rapazes, diziam os PMs, desceram e continuaram atirando.
O ex-secretário fazia questão de estar presente em todos os lugares onde acontecesse um caso grave. Erasmo ouviu o relato calado. E apanhou uma das armas que os homens da Rota diziam ter apreendido com os jovens - dois revólveres calibre 22 e um calibre 32. "Aí eu peguei assim a arma e fiquei com o tambor na mão", contou o coronel. A arma estava com defeito. Seria impossível que tivesse sido usada pelos rapazes. Erasmo riu e perguntou aos PMs: "Bandido estava com isso?". "É", respondeu o policial.
Erasmo então mostrou como escondeu em uma gaveta da delegacia a arma com defeito. "Meu amigo, eu peguei a arma, numa gaveta assim". Outro revólver foi providenciado pelos policiais para simular a resistência das vítimas. "Mais alguma coisa?", perguntou um policial. "Não, faz o inquérito aí, pô", disse Erasmo ao delegado. O secretário ainda daria "um esculacho" nos PMs: "Olha, vocês aprendem, viu, que eu sempre estarei do lado de vocês, mas nada explica e justifica. Não adianta mais ficar discutindo, agora vocês vão responder processo".
Desarmados - Depois de relatar a bronca, Erasmo esclareceu o que houve naquela noite: "É aquela história: eu sei como são as coisas. Depois de uma hora e meia perseguindo os caras, correndo risco de vida do c..., aqueles três garotos miseráveis... pô! Para, pô! O cara vai lá, o estado de ânimo do camarada... Eles (os rapazes) não estavam armados porra nenhuma", confessou, rindo. "Na hora H, por que foge? Se foge é bandido! Então dá essa desgraça que a gente torce pra não dar."
E prossegue. Para ele, a perseguição, o escuro, a tensão, tudo induziu os homens da Rota 66 a pensar que os jovens de classe média eram bandidos perigosos. "Cada vez que eles corriam atrás do camarada - e isso acontece muito com a polícia -, o �gordo� vira mais bandido do que é. E são três bobinhos que não tinham habilitação. Mas é a tal história: aí foi uma culpa dolosa... Não pode enfrentar a polícia! Não pode fugir da polícia! Quem foge da polícia é bandido." E conclui: "Depois vem a merda; conforme o caso, enruste uma maconha, uma arma. É autodefesa".
Essa não seria a última vez que isso aconteceria com Erasmo. Ele respirou e continuou. "Não foi uma nem duas vezes... Às vezes, chegava assim e o cara estava morto sem ninguém vendo - só Deus sabe - e eu chegava assim e via o revólver e tic, tic, tic". O ex-secretário demonstrou em seu gabinete como fazia para simular que o "bandido" atirava até descarregar sua arma. "Cansei de ver no começo: polícia deu cinco tiros e o bandido um só. É excesso de zelo! Economia! Eu fazia, quando eu ia (aos locais de crimes). A primeira coisa que eu fazia era isso (descarregar a arma do suspeito morto). Quando eu não estava lá, não recomendava que o cara (o policial) fizesse isso, pois o cara põe a mão nisso, ele vai ser indiciado; eu não vou ser indiciado."
No fim, Erasmo explicou como a experiência na Secretaria da Segurança transforma um homem: "A gente vai ficando meio sádico; vê tanta brutalidade dessa gente (criminosos) que dá vontade de matar".
(Com Estadão Conteúdo)

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