A Síria é gêmea do Iraque
O país de Assad é uma ditadura multissectária e, a não ser que apareça uma parteira externa ou um Mandela sírio, as chamas podem arder por anos
DAMASCO - Deus sabe que estou torcendo para que as forças da oposição
obtenham na Síria uma rápida vitória por conta própria e demonstrem inclinações
tão democráticas quanto esperamos. Mas a probabilidade desse resultado, o melhor
possível, é baixa. E isso porque a Síria se parece muito com o Iraque. Na
verdade, a Síria é como uma gêmea do Iraque - uma ditadura multissectária
governada por uma minoria que era mantida pela mão de ferro da ideologia
baathista.
Para mim, a lição aprendida no Iraque é bastante simples: não se pode sair de Saddam e chegar à Suíça sem ficar encalhado em Hobbes - uma guerra de todos contra todos - a não ser que se tenha uma parteira externa e bem armada, a quem todos os presentes temam e na qual todos confiem enquanto gestora da transição. No Iraque, esse papel coube aos Estados Unidos. O tipo de parto de baixo custo, comandado por controle remoto pela ONU/Otan, que derrubou Kadafi e levou ao nascimento de uma nova Líbia não deve se repetir na Síria. A Síria é mais difícil. A Síria é como o Iraque.
E o Iraque foi uma experiência tão amarga para os EUA que preferimos nunca mais voltar a falar no assunto. Mas o Iraque é relevante neste caso. O único motivo pelo qual o Iraque tem hoje a chance de chegar a um resultado decente é o fato de os EUA terem estado presentes com dezenas de milhares de soldados para agir como a parteira bem armada, merecedora de razoável confiança de todos os lados e certamente temida por eles, para administrar a transição do Iraque para uma política mais consensual. Meus instintos me dizem que a Síria vai exigir o mesmo para que tenha a mesma chance.
Como eu jamais defenderia uma nova intervenção americana em terreno sírio nem em nenhuma outra parte do mundo árabe novamente - e como o público americano jamais apoiaria algo assim - vejo-me torcendo para que os analistas estejam errados e os sírios possam nos surpreender ao encontrarem o próprio caminho, com armas justas e assistência diplomática, chegando a um futuro político melhor. Sei que se espera dos colunistas que batam na mesa e apontem aquilo que é necessário. Mas, quando acreditamos que o necessário - uma parteira externa para a Síria - é impossível, é preciso dizê-lo. Acho que aqueles que defendem uma intervenção americana mais ativa na Síria - criticando o presidente Barack Obama por não liderar tal esforço - não estão sendo realistas quanto ao que seria necessário para a criação de um resultado decente.
Por quê? No Oriente Médio, a alternativa ao ruim nem sempre é o bom.
Ela pode ser pior. Fico impressionado com a bravura dos rebeldes sírios que deram início ao levante, pacificamente, sem armamento, contra um regime que joga por aquilo que chamo de regras de Hama, ou seja, nenhuma regra. O governo Assad matou manifestantes deliberadamente para transformar o conflito numa luta sectária entre a minoria alauita, liderada pelo clã Assad, e os muçulmanos sunitas, maioria no país. É por isso que o oposto à ditadura de Assad seria a partilha da Síria - conforme os alauitas recuam para seus redutos na costa - e uma permanente guerra civil.
Há duas coisas que poderiam nos afastar desse resultado. Uma delas é a alternativa iraquiana, na qual os EUA intervieram e decapitaram o regime de Saddam, ocuparam o país e forçaram a transformação de uma ditadura liderada pelos sunitas numa democracia liderada pela maioria xiita. Graças tanto à incompetência dos EUA quanto à natureza do Iraque, essa intervenção americana deu início a uma guerra civil na qual todos os envolvidos no Iraque - sunitas, xiitas e curdos - testaram o novo equilíbrio do poder, infligindo pesadas baixas uns aos outros e levando, tragicamente, a uma limpeza étnica que rearranjou o país em blocos mais homogêneos de sunitas, xiitas e curdos.
Mas a presença americana no Iraque conteve a guerra civil e impediu a limpeza étnica de se espalhar para os países vizinhos. E, depois que a guerra civil perdeu força - e todos os lados se viram exaustos e mais separados uns dos outros - os EUA negociaram com sucesso a aprovação de uma nova Constituição e um novo acordo de divisão do poder no Iraque, com os xiitas desfrutando do poder da maioria, os sunitas afastados do poder, mas não impotentes, e os curdos garantindo sua autonomia parcial. O custo dessa transição em vidas e recursos foi imenso e, mesmo hoje, o Iraque não é uma democracia estável nem saudável. Mas o país tem uma chance e seu destino cabe agora aos iraquianos.
Como é muito improvável que uma parteira armada, temida e digna de confiança ouse entrar no embate na Síria, os rebeldes no país terão de vencer sozinhos. Levando-se em consideração a fragmentação da sociedade síria, isso não será fácil - a não ser que tenhamos uma surpresa. Seria surpreendente, por exemplo, se os diferentes grupos da oposição síria se reunissem numa frente política unida - talvez com a ajuda de funcionários dos serviços de informações dos EUA, da Turquia e da Arábia Saudita, já no país -, assim como surpreenderia se essa nova frente buscasse negociar com cristãos e alauitas moderados que tenham apoiado o clã Assad por medo, concordando em construir juntos uma nova ordem que proteja os direitos da maioria e da minoria. Seria maravilhoso ver o tirânico eixo Assad-Rússia-Hezbollah ser substituído por uma Síria democrática, e não por uma Síria caótica.
Mas as coisas não são tão simples assim. Os 20% da população síria compostos por alauitas e cristãos pró-Assad morrerão de medo da nova maioria dos muçulmanos sunitas, com seu componente da Irmandade Muçulmana, e essa maioria de muçulmanos sunitas sofreu tamanha brutalidade nas mãos deste regime que a reconciliação será difícil, especialmente com o passar de cada dia de sanguinolência. Sem uma parteira externa ou um Nelson Mandela sírio, as chamas do conflito podem arder por muito tempo. Torço para ser surpreendido.
Para mim, a lição aprendida no Iraque é bastante simples: não se pode sair de Saddam e chegar à Suíça sem ficar encalhado em Hobbes - uma guerra de todos contra todos - a não ser que se tenha uma parteira externa e bem armada, a quem todos os presentes temam e na qual todos confiem enquanto gestora da transição. No Iraque, esse papel coube aos Estados Unidos. O tipo de parto de baixo custo, comandado por controle remoto pela ONU/Otan, que derrubou Kadafi e levou ao nascimento de uma nova Líbia não deve se repetir na Síria. A Síria é mais difícil. A Síria é como o Iraque.
E o Iraque foi uma experiência tão amarga para os EUA que preferimos nunca mais voltar a falar no assunto. Mas o Iraque é relevante neste caso. O único motivo pelo qual o Iraque tem hoje a chance de chegar a um resultado decente é o fato de os EUA terem estado presentes com dezenas de milhares de soldados para agir como a parteira bem armada, merecedora de razoável confiança de todos os lados e certamente temida por eles, para administrar a transição do Iraque para uma política mais consensual. Meus instintos me dizem que a Síria vai exigir o mesmo para que tenha a mesma chance.
Como eu jamais defenderia uma nova intervenção americana em terreno sírio nem em nenhuma outra parte do mundo árabe novamente - e como o público americano jamais apoiaria algo assim - vejo-me torcendo para que os analistas estejam errados e os sírios possam nos surpreender ao encontrarem o próprio caminho, com armas justas e assistência diplomática, chegando a um futuro político melhor. Sei que se espera dos colunistas que batam na mesa e apontem aquilo que é necessário. Mas, quando acreditamos que o necessário - uma parteira externa para a Síria - é impossível, é preciso dizê-lo. Acho que aqueles que defendem uma intervenção americana mais ativa na Síria - criticando o presidente Barack Obama por não liderar tal esforço - não estão sendo realistas quanto ao que seria necessário para a criação de um resultado decente.
Por quê? No Oriente Médio, a alternativa ao ruim nem sempre é o bom.
Ela pode ser pior. Fico impressionado com a bravura dos rebeldes sírios que deram início ao levante, pacificamente, sem armamento, contra um regime que joga por aquilo que chamo de regras de Hama, ou seja, nenhuma regra. O governo Assad matou manifestantes deliberadamente para transformar o conflito numa luta sectária entre a minoria alauita, liderada pelo clã Assad, e os muçulmanos sunitas, maioria no país. É por isso que o oposto à ditadura de Assad seria a partilha da Síria - conforme os alauitas recuam para seus redutos na costa - e uma permanente guerra civil.
Há duas coisas que poderiam nos afastar desse resultado. Uma delas é a alternativa iraquiana, na qual os EUA intervieram e decapitaram o regime de Saddam, ocuparam o país e forçaram a transformação de uma ditadura liderada pelos sunitas numa democracia liderada pela maioria xiita. Graças tanto à incompetência dos EUA quanto à natureza do Iraque, essa intervenção americana deu início a uma guerra civil na qual todos os envolvidos no Iraque - sunitas, xiitas e curdos - testaram o novo equilíbrio do poder, infligindo pesadas baixas uns aos outros e levando, tragicamente, a uma limpeza étnica que rearranjou o país em blocos mais homogêneos de sunitas, xiitas e curdos.
Mas a presença americana no Iraque conteve a guerra civil e impediu a limpeza étnica de se espalhar para os países vizinhos. E, depois que a guerra civil perdeu força - e todos os lados se viram exaustos e mais separados uns dos outros - os EUA negociaram com sucesso a aprovação de uma nova Constituição e um novo acordo de divisão do poder no Iraque, com os xiitas desfrutando do poder da maioria, os sunitas afastados do poder, mas não impotentes, e os curdos garantindo sua autonomia parcial. O custo dessa transição em vidas e recursos foi imenso e, mesmo hoje, o Iraque não é uma democracia estável nem saudável. Mas o país tem uma chance e seu destino cabe agora aos iraquianos.
Como é muito improvável que uma parteira armada, temida e digna de confiança ouse entrar no embate na Síria, os rebeldes no país terão de vencer sozinhos. Levando-se em consideração a fragmentação da sociedade síria, isso não será fácil - a não ser que tenhamos uma surpresa. Seria surpreendente, por exemplo, se os diferentes grupos da oposição síria se reunissem numa frente política unida - talvez com a ajuda de funcionários dos serviços de informações dos EUA, da Turquia e da Arábia Saudita, já no país -, assim como surpreenderia se essa nova frente buscasse negociar com cristãos e alauitas moderados que tenham apoiado o clã Assad por medo, concordando em construir juntos uma nova ordem que proteja os direitos da maioria e da minoria. Seria maravilhoso ver o tirânico eixo Assad-Rússia-Hezbollah ser substituído por uma Síria democrática, e não por uma Síria caótica.
Mas as coisas não são tão simples assim. Os 20% da população síria compostos por alauitas e cristãos pró-Assad morrerão de medo da nova maioria dos muçulmanos sunitas, com seu componente da Irmandade Muçulmana, e essa maioria de muçulmanos sunitas sofreu tamanha brutalidade nas mãos deste regime que a reconciliação será difícil, especialmente com o passar de cada dia de sanguinolência. Sem uma parteira externa ou um Nelson Mandela sírio, as chamas do conflito podem arder por muito tempo. Torço para ser surpreendido.
Comentários
Postar um comentário