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Sobreviventes da boate Kiss vivem entre o trauma e a luta por Justiça

Aniversário da tragédia une famílias dos 242 jovens mortos em Santa Maria e moradores da cidade em campanha pela punição dos responsáveis

 
Rodrigo Moura Ruoso, 21 anos, vive permanentemente com uma imagem na memória. “O que eu vi lá dentro não é o que passou na televisão. Imagine 200 corpos amontoados. Parecia que eles estavam dormindo, mas estavam mortos”, descreve, detalhando a cena que presenciou no momento em que algumas pessoas ainda tentavam deixar o inferno em que se transformou a boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro de 2012. Rodrigo era segurança da Kiss. Foi ele o primeiro a tentar apagar o fogo, depois de o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, acender o sinalizador que, em contato com o isolamento acústico inflamável, iniciou as chamas e pôs fim à vida de 242 jovens.
O aniversário de um ano da tragédia faz com que parte do Brasil reviva a dor daquele fim de semana. Rodrigo nunca deixou de conviver com essas sensações, e, desde então, os dias são uma tentativa permanente de recomeçar sem ser assombrado pelas lembranças. A vida do segurança foi, de muitas formas, moldada a partir daquela madrugada. A namorada que o apoia, Jakellinne Lankart, 32 anos, conheceu Rodrigo a partir do dia da tragédia. Em solidariedade a ele, enviou uma mensagem pelo Facebook, por tê-lo reconhecido em uma transmissão de TV. Os dois se aproximaram e acabaram se envolvendo mais e mais. “Ele já acordou gritando ‘fogo, fogo, pula, pula’ bem perto da janela do quarto. Eu tive de segurá-lo e explicar que nada disso estava acontecendo”, conta Jakellinne.
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Das primeiras mensagens até o encontro, houve demora de muitos dias. Depois da primeira conversa, Rodrigo sumiu. Jakellinne não entendeu o motivo do silêncio no novo amigo. Nesse período, o segurança ficou internado, passou 20 dias em coma e iniciou um longo processo para se recuperar de problemas respiratórios, causados pelas inúmeras vezes em que voltou para dentro da boate na tentativa de salvar quem havia desmaiado por conta do cianeto. O gás tóxico – o mesmo usado nas câmaras de gás nazistas – foi produzido pela queima da espuma inadequada, usada como revestimento acústico da boate.
Depois de retomar as conversas, os dois tentaram morar em Salvador. Com dificuldades de adaptação, o casal voltou a viver em Santa Maria. Rodrigo atualmente tem dificuldade de encontrar um novo trabalho. Além do trauma psicológico, ele precisa de acompanhamento médico, e, como conta, as empresas preferem não contratá-lo. O que salva é a ajuda da família e o auxílio do INSS, já que Rodrigo ainda tem a carteira de trabalho assinada pela Kiss. Para aumentar a renda, ele e a namorada entregam quentinhas. “Teve momentos que eu não queria mais viver. Comia porque a associação ajudava com cesta básica. Fiquei muito magro”, conta Rodrigo.
Assistência às famílias – A entidade que ajudou o sobrevivente foi criada uma semana após o incêndio pelo pai de uma vítima da Kiss, a estudante de Psicologia Jennifer, então com 22 anos. Adherbal Ferreira, 49, conta que deu início à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de SM (AVTSM) para que servisse de apoio aos outros pais que estavam passando pela mesma dor que ele. Hoje, a associação conta com a ajuda de advogados voluntários e acompanha de perto os processos judiciais e as alterações nas leis contra incêndio, além de organizar manifestações.
“Queremos que a justiça seja plena, que todos paguem. Cada um tem seu grau de culpabilidade, sejam os donos, os bombeiros, a prefeitura, os músicos. Eu perdi a minha princesa. Isso foi um assassinato em massa. Só queremos respostas e justiça”, desabafa Ferreira, com dificuldade, enxugando as lágrimas.
“Tem gente chamando de fatalidade. Não é. Teve ação do homem, foi um massacre o que aconteceu na Kiss. Tiraram a vida de 242 jovens, eles não queriam morrer. O fogo foi consequência de falha no procedimento administrativo. Os órgãos públicos têm responsabilidade, eles são pagos para isso”, critica um dos advogados da AVTSM, Luiz Fernando Smaniotto.
A Praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria, é um ponto permanente de apoio às vítimas da tragédia. Diariamente, das 8h às 18h, parentes dos 242 jovens mortos revezam-se para manter o local em atividade, com fotografias das vítimas, flores e o mais importante: disponibilidade para ouvir quem quiser se apresentar e falar de sua dor. As vigílias foram pensadas para funcionar como uma grande sessão de terapia: quem dá amparo hoje pode precisar de ajuda amanhã, e assim têm sido os dias de quem perdeu alguém no incêndio.
Para quem está ligado diretamente com a tragédia, 27 de janeiro de 2013 ainda é o tempo presente. “É como se tivesse sido ontem”, tenta explicar Sergio da Silva, militar da reserva e pai de Augusto Sérgio, estudante de Direito morto aos 20 anos. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de SM (AVTSM) lidera a busca por justiça. Mas na cidade há, de tempos em tempos, decepções com a dificuldade de condenar os responsáveis pelo incêndio. “O sistema se protege”, critica Silva. “O fato de perder alguém é uma dor com a qual temos que nos acostumar. O que não conseguimos aceitar é o fato de que quem causou tudo isso continua levando a vida normalmente, graças à indiferença do pode público”, diz.
O médico Mario do Canto, pai de Mariana Comassetto do Canto, morta aos 18 anos, compara a morte dos jovens com a crueldade dos campos de concentração nazistas. “Duzentos e quarenta e dois mortos por pura ganância, por corrupção. Mataram esses jovens. É o Auschwitz santa-mariense. Isso não pode cair no esquecimento, tem de servir para chamar a atenção do país”, afirma.

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