Com reformas de Dilma, Brasil não é mais porto seguro
Presidente promove mudanças estruturais em curto período para estimular avanço da indústria, mas obtém o efeito contrário. Empresários são intimidados pela perda de previsibilidade econômica e paralisam investimentos
Dilma pede confiança a
investidor, mas suas ações acabam por afastá-lo (Fernando Bizerra Jr/EFE)
Ao longo de 2012, o governo da presidente Dilma
Rousseff empenhou-se em adotar algumas medidas estruturais que seus antecessores, sobretudo
o ex-presidente Lula, deixaram passar. Desoneração da folha de pagamento das
empresas, mudanças no ICMS
dos estados, barateamento das contas de luz, queda forçada dos
juros, diversos pacotes de estímulo à indústria e privatizações marcaram o
segundo ano desta gestão petista. Por trás de todo este aparato, há um anseio,
com nuances autoritárias, de transformar o Brasil numa nação com indústria
competitiva – quer seja essa sua vocação, quer não. Neste contexto, o setor
industrial teria motivos para comemorar. Mas não é isso que se verifica. Segundo
analistas ouvidos pelo site de VEJA, as mudanças – feitas de forma truculenta e
atabalhoada, sem um período de adaptação – têm tirado do país um bem adquirido
com muito esforço desde o início do Plano Real, em 1994: o da previsibilidade.
Diante de um governo que metralha medidas, que são, em muitos casos,
protecionistas, o risco de se investir aqui aumentou.
Conteúdo nacional – A política do
conteúdo
nacional, iniciada no governo anterior, tem sido um dos principais
veículos de execução de mudanças. Para aumentar a competitividade do setor
industrial, o governo acredita que é preciso estimular uma cadeia produtiva
forte em praticamente todos os seus elos e também reduzir de maneira expressiva
as importações. Para tanto, o Palácio do Planalto dispunha de dois caminhos: (i)
reduzir custos e aumentar a eficiência das empresas por meio de profundas
reformas estruturais, como a tributária, ou (ii) a desoneração de áreas
específicas da indústria em troca da utilização de cotas de produtos fabricados
localmente para substituir importados. O caminho escolhido por Dilma foi o
segundo. É um remédio que pode trazer um resultado mais rápido, mas cheio de
efeitos colaterais. “Fortalecer a cadeia produtiva é um passo importante. A
teoria é muito positiva. O problema é como isso é feito, pois pode afastar o
investidor estrangeiro. É preciso que haja um tempo de adaptação”, explica
Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do
Desenvolvimento e sócio da consultoria BarralMJorge.
Ao querer dirimir diversos entraves setoriais de
uma só vez, a presidente Dilma desovou medidas seguidas e de maneira brusca, com
viés protecionista e resultados nem sempre agradáveis. O Planalto aproveitou que
a queda da taxa básica de juros (Selic) em 2012 permitiu que o Tesouro
desembolsasse menos para pagar o serviço da dívida pública e resolveu atuar de
forma pouco ortodoxa na carga tributária – as desonerações fiscais representaram
a principal medida na tentativa de estimular a economia. É correto afirmar que
tal política beneficiou alguns segmentos, mas não mexeu no cerne do problema
tributário brasileiro: sua profunda complexidade e pesada presença de impostos
em cascata. Ao que tudo indica, o remédio também parece ter sido exagerado. Num
cenário de arrecadação menos vigorosa como o atual, o governo federal conseguiu
a proeza de fechar novembro com resultado primário
negativo.
Parcialidade – Empresários reclamam que os pacotes frequentes deixam o sistema ainda mais complexo. E a opção governamental de olhar para a economia de 'forma parcial' mais atrapalhou que ajudou até o momento. Mesmo setores beneficiados pelo ímpeto de “bondade” da presidente "puxaram o freio" dos investimentos – num efeito combinado de expectativa do que está por vir, insegurança com as escolhas feitas por Dilma e uma economia que realmente esteve menos favorável no ano. Há segmentos que passaram os últimos doze meses praticamente travados no aguardo de pacotes para conseguirem se planejar para o futuro.
Diante deste quadro, a taxa de investimento declinou 2,4% no terceiro trimestre do ano, em sua a quinta queda trimestral consecutiva. De acordo com as últimas estimativas do Banco Central (BC), o mais provável é que recuará ainda mais. A autoridade monetária prevê um declínio de 3,5% para o quarto trimestre, segundo o Relatório Trimestral de Inflação divulgado na última quinta-feira.
O efeito da avalanche de pacotes, na opinião de analistas, serão justamente novas quedas do investimento. O mercado avalia que 2013 também será um ano repleto de decretos, resoluções, medidas provisórias, editais, etc – e não de aportes reais na economia.
Efeitos colaterais – A dificuldade cada vez maior de antecipar minimamente o futuro de suas operações coloca em risco estratégias de longo prazo de empresas país afora – já que muitas delas desconhecem quando ou se algum outro pacote poderá ser anunciado. Outro agravante é o efeito ‘enquadramento’. Ocorre que, no intuito de beneficiar o setor privado, as bruscas mudanças impostas pelo governo acabam por criar um novo tipo de burocracia tributária: o desafio de conseguir se enquadrar nas exigências no governo. Isso significa, por exemplo, que as empresas devem não só cumprir as tais metas de conteúdo nacional, mas também provar que atuam conforme as métricas que o Planalto impõe. Para piorar, em muitos casos, os critérios são subjetivos e nebulosos.
O executivo de uma grande empresa de fabricação e varejo de roupas afirmou ao site de VEJA que continua à espera das bondades do governo. Ainda que o setor têxtil tenha sido alvo de vários benefícios fiscais e barreiras anti-importação, o enquadramento das empresas para receber os benefícios ainda não está resolvido. “Há muita publicidade em torno dos benefícios fiscais e das desonerações. Mas até conseguir resolver a burocracia e transformar benefícios em ganhos para a empresa e redução do custo Brasil, ainda levará muito tempo”, afirma.
A empresa sueca Ericsson, que está no Brasil há mais de um século, enfrenta um revés na certificação de um de seus produtos para conseguir desoneração do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A fabricante é uma das que estão habilitadas a fornecer equipamentos para a internet móvel de quarta geração (4G) a operadoras brasileiras, mas as exigências de conteúdo local feitas pelo governo podem atrapalhar o avanço da nova rede. De acordo com o edital publicado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com base na Portaria nº 950, 10% dos equipamentos contratados pelas operadoras precisam ter tecnologia nacional. A partir de 2015, esse porcentual subirá para 15% e, depois, para 20% em 2017. Para obter o certificado de produto de tecnologia nacional para um rádio que será usado na rede, a Ericsson tentou o enquadramento junto ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e não conseguiu. A explicação é que o MCTI avaliou que a tecnologia havia sido adaptada, e não desenvolvida no Brasil.
A multinacional discorda. Ela afirma ter investido 8 milhões de reais para desenvolver o projeto no país em parceria com o instituto de pesquisa Fitec. Segundo o presidente da Ericsson para a América Latina e Caribe, Sérgio Quiroga, havia a intenção de investir 80 milhões de reais apenas em 2013 para desenvolver componentes para a rede 4G. Os planos, agora, estão paralisados. “Como vou chegar para a matriz e pedir mais investimentos para o Brasil depois de um ‘não’ como esse?”, argumentou Quiroga, em entrevista ao site de VEJA. A empresa recorreu junto ao MCTI. Quer detalhar melhor o desenvolvimento do rádio para mostrar que se trata de uma tecnologia nacional. Sem a desoneração propiciada pelo enquadramento na Portaria nº 950, as operadoras deverão comprar menos da empresa, colocando em xeque sua operação de telecomunicações no país. “Já tive de brigar muito na matriz para manter a Ericsson operando no Brasil”, diz Quiroga.
Segundo o MCTI, o problema de certificação da Ericsson é pontual. O órgão argumenta que 84 empresas que buscaram se enquadrar na Portaria nº 950 em 2012 e apenas seis não conseguiram. O secretário de Política de Informática da pasta, Virgílio Almeida, afirmou ao site de VEJA que entende a necessidade de as empresas utilizarem componentes importados em seus produtos e concorda que os processos de desenvolvimento tecnológico são cada vez mais globais. Mas foi taxativo em relação à necessidade de inovação em produtos fabricados no país. “Queremos que as empresas desenvolvam a engenharia de seus produtos aqui. Veja o exemplo da Embraer. Ela trabalha com peças provenientes de inúmeros países, mas possui uma engenharia única e característica. A tecnologia do conjunto é nacional”, afirma.
Surpresas desagradáveis – O ano de 2012 também foi um dos anos mais difíceis para o setor automotivo – tanto pelo protecionismo praticado pelo governo quanto pela burocracia de seus pacotes. O aumento de 30 pontos porcentuais no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos automóveis importados, que entrou em vigor em dezembro 2011, paralisou o setor. Foi o maior incidente de insegurança jurídica empresarial no país até o recente episódio da renovação das concessões das distribuidoras de energia elétrica.
A medida elaborada pelo Ministério da Fazenda – e com o completo aval da presidente Dilma – determinou que, do dia para a noite, todos os importadores de veículos do país pagassem uma alíquota adicional de IPI nos veículos que trouxessem do exterior. Após semanas de brigas e até mesmo de ameaças de alguns países em levar o Brasil à Organização Mundial do Comércio (OMC) por protecionismo, o Planalto teve de conceder, ao menos, um prazo de adaptação. É que, em 20 de outubro de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a medida por um prazo de noventa dias contados a partir da data de sua publicação no Diário Oficial, em 16 de setembro. A explicação é que o governo havia afrontado a Lei: a presidente violou garantia prevista no artigo nº 150 da Constituição, que dispõe que o cidadão não pode ser surpreendido com aumento de imposto sem que se respeite a noventena.
Veículos importados: mercado
fechado
A resolução, quando enfim entrou em vigor, lançou por terra as vendas de automóveis importados. Os empresários do setor paralisaram investimentos na ampliação de suas redes e, segundo a Associação Brasileira das Empresas Importadoras de Veículos Automotores (Abeiva), mais de 10 mil postos de trabalho foram fechados. No início de 2012, veio outro baque: o governo anunciou a quebra do acordo automotivo com o México, que dava isenção de Imposto de Importação a automóveis e peças provenientes do país. Com o fim da parceria, o Brasil fixou cotas de importação que teriam o benefício fiscal – 1,45 bilhão de dólares em importados em 2012. Quem ultrapassasse esse número deveria pagar o imposto mais alto, na casa dos 35%. A medida prejudicou, inclusive, montadoras com plantas nacionais, como a Volkswagen e a Renault-Nissan, que mantinham importações expressivas do México.
Os dois anúncios, separados por um intervalo de menos de seis meses, fizeram com que o empresariado esbravejasse. A chinesa JAC Motors, que havia anunciado a abertura de uma fábrica no Brasil, ameaçou cancelar os planos. O mesmo fez a BMW.
Em abril, mais uma mudança: o governo anunciou uma prévia do Novo Regime Automotivo para o período 2013-2017, chamado de Inovar Auto, que seria decretado no decorrer do ano (o decreto só saiu em outubro). O documento tinha como objetivo legitimar as medidas anunciadas anteriormente e ampliar a ideia de conteúdo local para a indústria automobilística. Em teoria, as montadoras terão de investir um porcentual de sua receita em tecnologia, inovação e engenharia para escapar do IPI alto. No final das contas, as únicas empresas capazes de cumprir tais requisitos eram as que já estavam estabelecidas – e operavam no país.
O Inovar Auto prevê, no entanto, uma flexibilização do IPI alto para empresas interessadas em montar fábricas em território nacional. As que importam e não têm o menor interesse em se instalar no país, como é o caso das montadoras de carros de luxo, devem se submeter a cotas de importação que, se ultrapassadas, ficam sujeitas ao novo IPI.
Mais problemas – O novo regime automotivo entrará em vigor em 1º de janeiro de 2013, mas, até o momento, só metade das 30 empresas que pediram para serem enquadradas receberam resposta positiva. As que não conseguirem se habilitar não escaparão do imposto mais alto. O grupo Caoa – que fabrica no país os veículos Tucson e HR, da Hyundai – levantou um parque industrial de mais de 1 bilhão de reais em Anápolis, no interior de Goiás, mas até o momento não conseguiu a autorização. Projetos de expansão também estão sendo revistos. “Um projeto como o da Caoa é planejado durante anos. Quando, de uma hora para outra, a empresa descobre que terá de cumprir com coeficiente de conteúdo local e outros requisitos, tudo muda", afirma uma fonte ligada à empresa que preferiu não ter seu nome citado. Segundo a fonte, uma das dificuldades é encontrar fornecedores locais na velocidade que o governo deseja. "Um simples molde de uma peça demora mais de um ano para ser feito”, explica a fonte. Procurada, a Caoa não retornou o pedido de entrevista até o fechamento da reportagem. A Hyundai Brasil, que acaba de inaugurar fábrica em Piracicaba (em uma operação independente da Caoa), conseguiu se habilitar ao novo regime do setor.
Petróleo: setor é o mais
prejudicado
Tiro no pé – O setor de óleo e gás é, talvez, o mais penalizado pelas exigências de conteúdo local de Dilma e sua equipe. A política prejudica, diretamente, a própria Petrobras, que é a maior compradora do setor no Brasil. Em reportagem publicada pelo site de VEJA em agosto, Marcelo Mafra, chefe da Coordenadoria de Conteúdo Local da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), afirmou que, diante das dificuldades encontradas pelas fabricantes do setor naval em cumprir as metas, as empresas correm o risco de serem penalizadas com multas elevadas.
Dados preliminares da agência mostravam que, entre as empresas que fizeram parte da 7ª rodada de licitações – ocorrida em 2003 e cujos contratos de exploração terminam no fim de 2012 –, boa parte estava com defasagem muito grande entre o que foi proposto no leilão e o que, de fato, tinham conseguido alcançar. Segundo a ANP, as empresas vinham aplicando, em média, taxas de conteúdo local entre 25% e 30%, número bem inferior aos 55% determinados pelo governo.
Essas exigências no setor de óleo e gás não foram idealizadas apenas no governo Dilma. Elas surgiram em meados de 1999, mas foram ampliadas e aprimoradas pela atual presidente. Conforme reportagem publicada pelo site de VEJA no início de 2012, a presidente chegou a reunir empresários e ministros para um café em meados de 2011 e afirmou, com todas as letras, que iria estender a política de conteúdo nacional para todos os setores da indústria onde pudesse ser aplicada.
Segundo Pedro Marcelo Dittrich, advogado da área de petróleo do Tozzini Freire Advogados, as empresas que são atraídas ao país com a promessa de lucrar com o pré-sal temem não só a falta de fornecedores locais adequados, mas também o impacto que essa política pode ter em toda a cadeia de fornecimento dessas empresas no mundo. “Não adianta exigir 100% de conteúdo local. O país tem de verificar o estado da arte de sua indústria, isto é, quanto ela possui condições de produzir e de desenvolver”, explica.
A despeito do aumento do risco, do
intervencionismo, do protecionismo e da incapacidade do setor industrial em
fornecer equipamentos de ponta a todas as áreas (como sonha o governo), a
presidente Dilma Rousseff não parece ver nisso um problema. Na opinião dos
analistas, ela está praticamente sozinha, entoando um mantra de progresso que só
ela entende – e se irrita profundamente quando os demais não aplaudem a
estratégia. Em pronunciamento natalino de 2012, Dilma afirmou estar no caminho
certo – e pediu que o setor privado caminhasse junto com ela. Tendo em vista que
ela mesma coloca obstáculos no percurso, não é de se estranhar que a estrada
esteja quase vazia.
Comentários
Postar um comentário