Pular para o conteúdo principal

A conta dos empréstimos do BNDES para o Porto de Mariel não fecha

Levantamento de VEJA revela que o volume de bens e serviços exportados para Cuba não condizem com os valores destinados para a obra

Porto Mariel (Cuba)
Inaugurado em 2013, o Porto de Mariel, em Cuba, recebeu 682 milhões de dólares do BNDES. A obra é um dos segredos que serão desvendados pela CPI(Getty Images)
Desde a inauguração, em janeiro de 2014, do Porto de Mariel, em Cuba, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é questionado quanto aos critérios técnicos para o empréstimo de 682 milhões de dólares para a obra (cujo custo total foi de quase 1 bilhão de dólares), que ficou a cargo da empreiteira Odebrecht. A operação, feita com dinheiro dos contribuintes brasileiros, era vantajosa para o banco? Qual era o benefício econômico da obra para os interesses brasileiros? Por que o governo classificou o conteúdo do contrato como "secreto", com validade até 2027? O BNDES e a Odebrecht sempre deram a mesma resposta: que 100% do dinheiro investido não saiu do Brasil, ficando aqui na forma de pagamento de salários, de custos de engenharia e administração e de exportação de bens (cimento, aço, máquinas, carros, etc) destinados à construção. Na semana passada, Luciano Coutinho, do BNDES, repetiu a explicação em depoimento que marcou o início dos trabalhos da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), instalada na primeira semana de agosto no Congresso para investigar possíveis irregularidades na atuação do banco.
Falando não apenas de Mariel, Coutinho voltou a garantir que as operações de incentivo a obras no exterior são rentáveis e que os 12 bilhões de dólares concedidos em empréstimos foram integralmente destinados à compra de bens e à contratação de serviços no Brasil. Esta, aliás, é a regra para que o dinheiro seja concedido. Mas, como as obras são realizadas no exterior e não estão sujeitas ao escrutínio do Tribunal de Contas da União, a forma como esse dinheiro é gasto é uma caixa-preta que as empreiteiras e o próprio BNDES se recusam abrir.
Um levantamento realizado por VEJA, a partir da análise da balança comercial Brasil-Cuba, revela o abismo entre as explicações do presidente do BNDES e os números oficiais disponíveis. O total da exportação de produtos brasileiros que podem ser associados à construção civil (incluindo máquinas, caminhões, tratores e peças de reposição) para Cuba, entre 2010 e 2013, corresponde a apenas 22% do valor do empréstimo para construção do porto neste mesmo período. Trata-se de uma estimativa otimista, pois é possível que parte desses produtos exportados tenham sido destinados a outros empreendimentos, sem qualquer relação com Mariel.
Leia mais:
BNDES cobrou juros 'de pai para filho' em 70% dos empréstimos feitos no exterior
A 'volta ao mundo' da Odebrecht com dinheiro do BNDES
Conheça as obras mais caras financiadas pelo BNDES no exterior
Além das exportações de produtos, mediu-se o valor da contratação dos serviços sobre o total da obra. Para isso, baseou-se na referência utilizada pelo TCU para os empreendimentos no Brasil. Para calcular a relação dos custos dos serviços de engenharia e arquitetura, o tribunal se vale de uma pesquisa da Associação Brasileira de Consultores de Engenharia que montou uma tabela a partir das informações fornecidas por seus associados. Segundo a experiência auferida no Brasil, quanto maior o valor da obra, menor o impacto do preço dos projetos em seu custo final. Em uma obra como a de Mariel, esse percentual seria de cerca de 3,5% do valor do orçamento (ou seja, 3,5% sobre os quase 1 bilhão de reais do total da obra). E, ainda conforme estimativas do TCU, que considerou mais de 2 000 obras no Brasil para estabelecer um indicador, os custos indiretos de uma obra portuária são de 27,5%, em média (também sobre o valor total da obra). Este percentual inclui a administração da obra, despesas financeiras e o lucro da empreiteira.
Portanto, a soma da exportação de produtos para construção civil, além de carros e outros bens, dos serviços de engenharia e dos custos indiretos (incluindo a margem de lucro da empreiteira) mal chega 65% do valor do empréstimo concedido pelo BNDES. Onde foram aplicados os 35% restantes, que equivalem a 238,7 milhões de dólares?
Procurada por VEJA, a Odebrecht não informou como é composto o custo da obra. Limitou-se a enviar uma lista de fornecedores e afirmou ter gerado 130.000 postos de trabalho no Brasil. O BNDES sustentou que 100% dos recursos destinados às obras foram gastos na aquisição de produtos e serviços brasileiros. "Muita gente tem pensado que a CPI tem por objetivo destruir o BNDES. A nossa missão é justamente o contrário. Vamos revisar cada um desses contratos e caso existam problemas, ninguém será poupado", diz o deputado Marcos Rotta (PMDB-AM), que preside a CPI.
Na semana passada, a CPI definiu a estratégia de trabalho. Serão convidados a depor nas próximas sessões três ex-presidentes que comandaram a instituição desde 2003 - Carlos Lessa, Guido Mantega e Demian Fiocca. Requerimentos que previam a convocação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de seu filho Fábio Luis e de empresários como Eike Batista, Joesley Batista e Marcelo Odebrecht não serão votados até que a comissão consiga analisar um total de 270.000 contratos firmados pelo BNDES desde 2003. Para esse trabalho, os deputados pediram reforço. Farão parte da "força-tarefa" técnicos do Tribunal de Contas da União, do Coaf e da Polícia Federal.
A CPI do BNDES foi instalada no início de agosto para investigar os contratos firmados pelo banco nos últimos doze anos. Somente em projetos de infraestrutura em onze países, o BNDES destinou mais de 12 bilhões de dólares, no período. Angola, Venezuela e República Dominicana foram beneficiadas com cerca de 66% do total. Em junho, o banco publicou na internet informações sobre as taxas de juros e os prazos de pagamento de cada um dos 516 contratos firmados com onze países. A abertura parcial dos dados sequer resvalou no nível de transparência necessário para as operações.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Procurador do DF envia à PGR suspeitas sobre Jair Bolsonaro por improbidade e peculato Representação se baseia na suspeita de ex-assessora do presidente era 'funcionária fantasma'. Procuradora-geral da República vai analisar se pede abertura de inquérito para apurar. Por Mariana Oliveira, TV Globo  — Brasília O presidente Jair Bolsonaro — Foto: Isac Nóbrega/PR O procurador da República do Distrito Federal Carlos Henrique Martins Lima enviou à Procuradoria Geral da República representações que apontam suspeita do crime de peculato (desvio de dinheiro público) e de improbidade administrativa em relação ao presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL). A representação se baseia na suspeita de que Nathália Queiroz, ex-assessora parlamentar de Bolsonaro entre 2007 e 2016, período em que o presidente era deputado federal, tinha registro de frequência integral no gabinete da Câmara dos Deputados  enquanto trabalhava em horário comerci
Atuação que não deixam dúvidas por que deveremos votar em Felix Mendonça para Deputado Federal. NÚMERO  1234 . Félix Mendonça Júnior Félix Mendonça: Governo Ciro terá como foco o desenvolvimento e combate às desigualdades sociais O deputado Félix Mendonça Júnior (PDT-BA) vê com otimismo a pré-candidatura de Ciro Gomes à Presidência da República. A tendência, segundo ele, é de crescimento do ex-governador do Ceará. “Ciro é o nome mais preparado e, com certeza, a melhor opção entre todos os pré- candidatos. Com a campanha nas Leia mais Movimentos apoiam reivindicação de vaga na chapa de Rui Costa para o PDT na Bahia Neste final de semana, o cenário político baiano ganhou novos contornos após a declaração do presidente estadual do PDT, deputado federal Félix Mendonça Júnior, que reivindicou uma vaga para o partido na chapada majoritária do governador Rui Costa (PT) na eleição de 2018. Apesar de o parlamentar não ter citado Leia mais Câmara aprova, com par
Estudo ‘sem desqualificar religião’ é melhor caminho para combate à intolerância Hédio Silva defende cultura afro no STF / Foto: Jade Coelho / Bahia Notícias Uma atuação preventiva e não repressiva, através da informação e educação, é a chave para o combate ao racismo e intolerância religiosa, que só em 2019 já contabiliza 13 registros na Bahia. Essa é a avaliação do advogado das Culturas Afro-Brasileiras no Supremo Tribunal Federal (STF), Hédio Silva, e da promotora de Justiça e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis) do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Lívia Vaz. Para Hédio o ódio religioso tem início com a desinformação e passa por um itinerário até chegar a violência, e o poder público tem muitas maneiras de contribuir no combate à intolerância religiosa. "Estímulos [para a violência] são criados socialmente. Da mesma forma que você cria esses estímulos você pode estimular