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Vitorioso no pós-Mubarak, 'bloco islâmico' tenta se equilibrar no Egito

Apesar de 'rachas', bloco está em ascensão próximo a eleição presidencial.
Moderado Abdel Fotouh rivaliza com ex-chanceler do regime nas eleições.


Eles são 74% do Parlamento do Egito, possuem uma rede de serviços sociais muito maior que a do governo e, sob seu controle, estão diversos canais de televisão, assim como escolas e uma das principais universidades do país. No Egito pós-Mubarak, o "bloco islâmico", principal força politica e social do país, se encontra em franca ascensão, e sua influência atinge até mesmo setores da polícia e das forças armadas.
Mas a mera caracterização das forças do "bloco", que influencia quase todos os aspectos da vida social egípcia, disfarça as inúmeras fraturas presentes entre os islamitas. Linha-dura ou moderados, governistas ou revolucionários, liberais ou estatistas, a própria ideia de um "bloco islâmico" coeso parece estar cada vez mais distante da realidade.
No princípio, eram todos 'irmãos'
Ao contrário do que se imagina, a ascensão social dos islamitas é um fato relativamente novo na sociedade egípcia. Ao longo de todos os anos 1960, o país se colocava como um dos bastiões do secularismo na região, uma sociedade onde a Irmandade Muçulmana, a única organização radical religiosa de caráter nacional, possuía pouca simpatia entre a maioria da população.
Com a reorientação política do Egito após a morte do líder nacionalista Gamal Abdel Nasser, em 1970, o país foi lentamente caminhando em direção a uma maior mistura do Estado com a religião. Os novos governantes egípcios passaram a ver na islamização da sociedade a melhor forma de se protegerem do radicalismo de esquerda, que ameaçava as forças da ordem.
Egípcio passa em frente a tanque pintado em muro próximo à Praça Tahrir, no Cairo, em protesto contra a Junta Militar, nesta sexta-feira (18) (Foto: Reuters)Egípcio passa em frente a tanque pintado em muro próximo à Praça Tahrir, no Cairo, em protesto contra a Junta Militar, na sexta-feira (18) (Foto: Reuters)
Em meio aos conturbados anos 1970, a Irmandade também passou por um processo de transformação. A organização, que até então revindicava a tomada do poder pelas armas, passou lentamente a adotar uma perspectiva mais “gradualista” da tomada de poder. Fortalecendo sua rede social, composta por escolas, hospitais e instituições de caridade, a entidade passou a buscar um acordo tático com o estado egípcio. Seu projeto giraria em torno da ideia de "islamizar" a sociedade, em detrimento da tomada do poder pelas armas. Em pouco tempo, a organização e o estado nacional tornaram-se, de fato, aliados políticos.
Mais papistas que o papa
A lenta conversão da Irmandade em um partido pacífico, disposto a cooperar com o estado, gerou inevitáveis rachas no movimento. Setores mais radicalizados, adotando leituras ainda mais ortodoxas do Islã, começaram a romper com sua antiga organização, criando seus próprios grupos. A maioria destes ativistas, adeptos da escola ultraconservadora conhecida como Salafi, criaram instituições de caridade que até mesmo imitavam a Irmandade, porém com um grau de doutrinação muito mais forte que o dos “irmãos”.
Para os salafistas, que defendem uma concepção de sociedade similar à vivida pelo profeta Mohamed no século VI do calendário cristão, praticamente tudo é pecado. Até a música religiosa, quando acompanhada por instrumentos musicais, é vista como uma ofensa a Deus. Segue o raciocínio que, como na época de Mohamed não havia tais instrumentos, qualquer coisa que vá para além do canto "a capela" é um atentado ao Criador.
Cartaz mostra Mubarak 'enforcado' durante protesto que derrubou o regime (Foto: Aldo Sauda/G1)Cartaz mostra Mubarak 'enforcado' durante protesto que derrubou o regime (Foto: Aldo Sauda/G1)
Revolucionários, mas nem tanto
A política de apaziguamento dos islamitas, iniciada nos anos 70, foi mantida, se não aprofundada, ao longo dos 30 anos de ditadura do ex-presidente Hosni Mubarak. O presidente deposto chegou até mesmo a permitir que os "irmãos" disputassem as eleições para o Parlamento ocorridas nos últimos anos de seu mandato, estando mais do que disposto a manter uma política de dialogo com o grupo.
Não por acaso, quando milhões de jovens de todo o Egito saíram às ruas para protestar contra a ditadura do então presidente, a Irmandade foi pega sem saber como agir. Inicialmente contrária ao movimento, foi apenas quando tudo indicava que os enfrentamentos afetariam o todo da sociedade egípcia que os irmãos entraram em ação.
Assim como a Irmandade, os salafistas também se dividiram frente à revolução. Guiados por uma passagem no Corão que exige respeito à ordem instituída (seja ela qual for), boa parte de suas lideranças religiosas denunciou a tomada das ruas como pecado. Assim, como com a Irmandade, o chamado dos xeques salafistas acabou por não repercutir muito na base jovem do movimento.
Momento de oração durante protestos na Praça Tahrir, no Cairo (Foto: Aldo Sauda/G1)Momento de oração durante protestos na Praça Tahrir, no Cairo (Foto: Aldo Sauda/G1)
Islamitas e a juventude secular
Vestindo a tradicional galabeia, uma bata geralmente branca que vai até o pé, “irmãos” e salafistas encheram a Praça Tahrir ao longo dos 18 dias de protesto que derrubaram Mubarak. Distinguíveis pela barba comprida que, apesar de volumosa, é normalmente rala na região do bigode, os salafistas eram reconhecidos por tentar imitar à risca, até em questões estéticas, as descrições do profeta segundo os livros do Islã. "Suas" mulheres, vestindo o escuro nikkeb, um véu preto que encobre todo o rosto com exceção dos olhos, também se faziam presentes nas manifestações, gritando palavras de ordem e até mesmo participando de conflitos com a polícia. Elas se manifestavam lado a lado com mulheres de camiseta, calça jeans e cabelo descoberto.
Muitos acreditavam que a derrubada de Mubarak abriria uma nova página na relação entre a radicalizada juventude secular e os militantes dos grupos islâmicos.

A lua-de-mel entre islamitas e seculares radicais, porém, durou pouco. Logo após a queda de Mubarak, a Irmandade, novamente em conjunto com diversas lideranças salafistas, se movimentou para desmobilizar os atos de rua no Egito, enfurecendo a juventude secular. Enquanto esvaziava os espaços públicos de manifestação, a Irmandade começou a se fortalecer institucionalmente, constituindo um partido politico que viria a conquistar 42% do parlamento nas primeiras eleições democráticas do país, realizadas entre 28 de novembro de 2011 e 11 de janeiro de 2012. Os salafistas, igualmente atraídos pela chance de eleger deputados, montaram uma legenda partidária para lançar seus próprios postulantes. Mesmo sem um grupo que unificasse suas ações, os ultrarradicais islâmicos conseguiram impressionantes 24% das cadeiras do congresso.
Protesto na emblemática Praça Tahrir, no Cairo, que virou um dos símbolos da luta contra Mubarak e da Primavera Árabe (Foto: AP)Protesto na emblemática Praça Tahrir, no Cairo, que virou um dos símbolos da luta contra Mubarak e da Primavera Árabe (Foto: AP)
Primeiro à direita, depois à esquerda
Se, em um primeiro momento de sua historia, a Irmandade sofreu com rachas à sua direita, após a queda de Mubarak, foram inúmeros os jovens que deixaram a organização, reivindicando perspectivas mais liberais do Islã. Em meio aos diversos pequenos rachas (nenhum dos quais se deu de forma substancialmente organizada), Moheim Abdel Fotouh, um dos principais líderes da organização, optou por abandonar a Irmandade e se lançar candidato à Presidência da República.
A medida de Abdel Fotouh provocou uma reviravolta na politica egípcia. Respeitado entre ativistas islâmicos, conhecido entre setores populares, e tido como apoiador consistente das revindicações da revolução por justiça social, ele é visto hoje por muitos como o último homem capaz de resgatar o processo revolucionário egípcio.
Moheim Abdel Fotouh durante debate contra seu principal rival Amr Mussa, em 10 de maio (Foto: AFP)Moheim Abdel Fotouh durante debate contra seu principal rival Amr Mussa, em 10 de maio (Foto: AFP)
Um país dividido
Após o avanço da Irmandade e dos salafistas no parlamento, a divisão entre islamitas e seculares, inicialmente ignorada na revolução, parece hoje estar em muitos momentos acima da divisão entre apoiadores e opositores do regime. Mais do que isto, ela também implica um isolamento dos setores intelectualizados da classe média (quase sempre seculares) em relação às camadas mais pobres do campo e da cidade, marcadas por alta devoção religiosa. O deslocamento constante da Irmandade em direção a alianças com o regime, na prática, separou os revolucionários da Primavera Árabe desta enorme base social.
“Fotouh é nossa única chance de proteger a revolução”, afirma Tamer Wageed, dirigente do secular Partido da Aliança Socialista e firme defensor do candidato. “A divisão entre seculares e islâmicos apenas nos isola do povo. Fotouh é a melhor chance de superarmos este problema”. Quando confrontado com pontos polêmicos da candidatura de Abouel Fotouh, como sua adesão à lei islâmica, que pode significar claros retrocessos nos direitos das mulheres e das minorias, Wageed é rápido nos argumentos. "A grande massa da população egípcia já vive, de uma forma ou de outra, sob lei islâmica. O centro destas preocupações se dá muito mais entre ativistas de classe média do que na grande maioria do povo”, disse.
Eleições mais que confusas
Apesar de um comprometimento inicial da Irmandade de não lançar candidato à presidência, quando ficou claro que Omar Suleiman, ex-vice-presidente de Mubarak, disputaria o cargo mais alto do país, a organização mudou de ideia. Apresentando como candidato seu líder mais forte, o multimilionário Khairat El-Shater, a Irmandade se mostrou disposta a realizar um enfrentamento que até então evitara com o governo militar que sucedeu Mubarak.
Frente à primeira verdadeira crise no que parecia cada vez mais o enfrentamento de dois ex-aliados, a comissão eleitoral, com base em detalhes técnicos, optou inesperadamente por cancelar ambas as candidaturas.
Além de golpear ao mesmo tempo a Irmandade e a Junta Militar, os juízes da comissão também derrubaram a candidatura do excêntrico candidato salafista, Hazem Abu Ismail. Um islamita obcecado com teorias da conspiração, Abu Ismail, para choque de alguns e desespero de outros, ocupou por alguns instantes a dianteira das pesquisas eleitorais. Desprovido de partido e reivindicando a islamização da revolução egípcia, Abu Ismail se colocava, inclusive, à esquerda dos salafistas no Parlamento, muitas vezes denunciando-os por proximidade ao regime. Após ser eliminado pela comissão eleitoral, o candidato acusou uma ampla conspiração, orquestrada por Israel, pelos Estados Unidos e pelas forças da maçonaria pelo fim de sua candidatura.
Um moderado de verdade?
Com a eliminação de Khairat El-Shater (e sua substituição por uma figura pouco conhecida da Irmandade) e o fim da candidatura salafista, Fotouh tornou-se o único candidato islâmico com chance nas eleições egípcias. A polarização de sua candidatura com a de Amr Mussa, ex-chanceler de Mubarak que hoje lidera as pesquisas, está na prática aproximando diversas figuras públicas seculares à sua campanha.
Os candidatos a presidente Amr Moussa (dir.) e Abdel Moneim Abol Fotouh se cumprimentam durante debate no Egito (Foto: Almasry Alyoum Newspaper /Ahmed Hayman / Reuters)Os candidatos a presidente Amr Mssa (dir.) e
Abdel Fotouh se cumprimentam em debate no
Egito (Foto: Reuters)
A proximidade destes revolucionários com Abdel Fotouh, porém, não é vista com bons olhos por muitos observadores. Para Gilbert Achcar, professor da Escola de estudos Orientais e Africanos (Soas, na sigla em inglês), da Universidade de Londres, a ideia de que Fotouh representa um novo campo de islamitas moderados com tendência a apoiar a revolução é desastrosa. “Abdel Fotouh foi da Irmandade praticamente toda sua vida, ele apenas deixou a organização por ambições pessoais” afirma o acadêmico. “Colocar um sujeito destes como salvador da revolução é uma loucura”, diz.
Ao refletir sobre a possibilidade de Fotouh constituir um novo campo político no Egito, Achcar é ainda mais pessimista. “A ideia de Fotouh como força a ser disputada é inteiramente ilusória. Fotouh não possui nem um partido para apoiá-lo nem uma base social organizada. Se eleito, será refém, por um lado, da Irmandade, e, pelo outro, do Exército. Enfim, uma tragédia total”, afirma.
Em meio a eleições presidenciais confusas e à falta de opções progressistas, muitos críticos do Islã politico têm, contraditoriamente, se visto ao lado de lideranças islamitas. Mesmo assim, sua influência ainda está para ser vista no movimento. Apesar de todos seus rachas e fraturas, o “bloco islâmico” continua sendo um bloco.

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