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'Se há mortos nas ruas, é dever dos países vizinhos clamar por uma solução', diz ex-presidente do Chile

Em entrevista ao site de VEJA, Ricardo Lagos analisou o papel dos países sul-americanos diante da crise na Venezuela, fez um prognóstico do recém-empossado governo de Bachelet e falou sobre outros temas políticos e econômicos do continente

 
Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile
Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile entre 2000 e 2006
“O problema da integração na América do Sul não se resume a melhores estradas e portos, implica também diminuir a burocracia. Não tem sentido ter uma excelente autoestrada ligando La Paz a Arica se os caminhões ficam até 3 horas nas filas de aduanas que só trabalham oito horas por dia”
Quando deixou a Presidência do Chile, em 2006, o socialista Ricardo Lagos desfrutava o fenomenal índice de mais de 70% de popularidade. Primeiro socialista a chegar ao poder depois da ditadura militar, ele entregou à sua sucessora, Michelle Bachelet, um país integrado à economia global, com inflação controlada e ritmo de crescimento de 5,9% ao ano. Desde que deixou o Palácio de la Moneda, Lagos dedica-se à Fundação Democracia e Desenvolvimento, que promove o intercâmbio de experiências sobre crescimento econômico sustentável. Nesta semana, de passagem pelo Brasil para participar de palestras e encontros, o advogado e economista com formação na Duke University, nos Estados Unidos, conversou com exclusividade com a reportagem do site de VEJA. Criticou a demora dos países da América do Sul em mediar uma solução aos conflitos na Venezuela, falou das dificuldades que Bachelet vai enfrentar em seu novo mandato, da tensa relação de Santiago com Lima e ainda analisou os entraves para uma maior integração do continente. Confira os principais pontos da entrevista:
Desafios de Bachelet – O maior desafio do novo governo será entender e satisfazer as demandas de uma sociedade que já deixou a miséria para trás, afirma Lagos. “O país de 1990, época em que Augusto Pinochet deixou o governo e a democracia assumiu, era um Chile com 42% de pobres. Hoje temos 11%. Na época, o PIB per capita girava em torno de 5.000 dólares, hoje são mais de 15.000 dólares por habitante. O país mudou, as demandas são outras. Aprendemos que é mais fácil diminuir a pobreza do que satisfazer as demandas crescentes da sociedade".
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Na avaliação do ex-presidente, há uma insatisfação com a participação política e com os partidos em geral. Uma das provas disso foi a baixa presença na última eleição presidencial, que no segundo turno teve abstenção de quase 60%. "Há um conjunto de temas políticos e sociais que nos obrigam a repensar a relação entre governados e governantes”, salientou. “Hoje temos no Chile uma sociedade diferente, que sabe muito mais e exige muito mais. São demandas distintas que exigem soluções distintas”.
Dentre as principais demandas está a reforma da educação – promessa de campanha de Bachelet, em resposta aos constantes protestos no país relacionados à questão.  Atualmente a maioria das vagas na educação superior no Chile é privada e os financiamentos que o governo concede são considerados insatisfatórios e caros. “Para Bachelet conseguir fazer a reforma educacional, que é muito complicada e requer recursos financeiros, é preciso fazer antes uma reforma tributária. O ministro nomeado para a pasta da Educação, Nicolás Eyzaguirre, é uma pessoa muito capacitada e experiente – foi meu ministro da Fazenda – e, portanto, sabe muito bem das limitações econômicas”, avaliou Lagos.
O ex-presidente acredita que a reforma tributária só avançará se estiver contida em um único projeto de lei e for ”negociada com delicadeza” para ser aprovada pela maioria do Parlamento. Já a mudança na educação vai necessitar de vários projetos de lei compondo um pacote completo para uma reforma profunda, nos moldes que a população exige. “Esses projetos, quase todos, requerem uma maioria qualificada do Parlamento, pois são modificações constitucionais. Então, a aprovação é muito mais difícil, é preciso construir um consenso não apenas com os parlamentares, mas com a sociedade civil. Resumindo, eu creio que não será fácil o trabalho de Bachelet para fazer a reforma na educação”.
Economia chilena – Enquanto o Brasil amargou uma inflação de 5,91% e registrou expansão de 2,3% no PIB em 2013, o vizinho Chile, mesmo com números melhores, também se preocupa com o crescimento de sua economia, como aponta o ex-presidente. “A inflação no Chile está baixa [3,3% nos últimos doze meses, na medição mais recente], não é preocupante neste momento. Temos problemas de crescimento porque tivemos uma desaceleração na economia. Em parte por causa da desaceleração da China, em parte porque a Europa não terminou de se recuperar e, finalmente, porque não nos preparamos para esse momento. Esperamos ter fechado 2013 com crescimento de 4%, talvez 3,8%. Para 2014 as previsões apontam para um crescimento de 3,5%. Seguimos crescendo, mas estávamos nos acostumando a crescer acima de 5%”, disse Lagos, que defende uma diversificação na economia chilena para o país não ser tão dependente de suas exportações de minério – sobretudo o cobre.
Disputas com o Peru – Em janeiro, a Corte Internacional de Haia pôs fim a uma disputa que se arrastava há décadas sobre os limites territoriais marítimos entre Peru e Chile. O tribunal, que é subordinado às Nações Unidas, concedeu ao Peru parte da disputada região do Oceano Pacífico, mas deixou com o Chile a rica região pesqueira da costa. “No Chile não houve satisfação pela sentença, mas iremos acatá-la e respeitá-la. Esperamos que isso acabe com os pedidos do governo peruano. O tratado territorial que temos com o Peru data de 1929 e durante mais de 50 anos eles nunca disseram que havia um problema de divisas no mar. E de repente apareceu este. Esperamos que não apareçam outros”.
Integração da América do Sul – É sabido que um dos grandes entraves da região está na fragilidade de sua infraestrutura, com rodovias sucateadas, portos defasados e aeroportos que se tornaram pequenos demais para suprir a demanda. “Este tema tem de estar na ordem do dia dos líderes da América do Sul. Sempre defendi a necessidade de corredores oceânicos ligando os países da América Latina aos principais portos. Avançamos, mas ainda falta muita coisa”, disse o ex-presidente.
Para Lagos, porém, o problema vai além e reside em outro mal crônico que afeta a região: a burocracia. “O problema não se resume a melhores estradas e portos; implica diminuir a burocracia. Não tem sentido ter uma excelente autoestrada ligando La Paz a Arica [cidade portuária chilena] se os caminhões ficam até 3 horas nas filas de aduanas que só trabalham oito horas por dia”, avaliou. Para melhor ilustrar seu ponto de vista, ele citou um exemplo real e desanimador. “Imagine um caminhão que parte de São Paulo ao Chile, ele será revisado nas aduanas entre Brasil e Paraguai, e depois entre Paraguai e Bolívia, e ainda entre Bolívia e Chile. É um absurdo. Na Europa, a carga é fiscalizada uma única vez e os caminhões ganham passe-livre para circular por qualquer país da comunidade europeia. Perdemos tempo e dinheiro por causa da burocracia”.
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Crise na Venezuela – Juntamente com outros ex-presidentes da região, incluindo seus ex-colegas Fernando Henrique Cardoso e Alejandro Toledo (presidente do Peru entre 2001 e 2006), Lagos emitiu uma declaração defendendo negociações entre o governo e a oposição na Venezuela em uma tentativa de restaurar a paz diante dos conflitos frequentes nos protestos contra o governo duramente reprimidos por Nicolás Maduro. O número de mortos em mais de um mês de manifestações já se conta às dezenas, mas a posição dos países da região segue, no mínimo, tímida.
Para Lagos, "é imperativo que as partes se sentem para conversar civilizadamente e isso está demorando a acontecer”. Ele acredita que os países vizinhos têm o dever de proteger os cidadãos venezuelanos das violações dos direitos humanos. “Nós, latino-americanos, precisamos aprender a resolver nossos conflitos políticos de forma adulta, pacificamente. Se há mortos nas ruas, é dever dos países vizinhos clamar por uma solução. Não é um direito, é um dever. Temos uma responsabilidade no direito internacional, a responsabilidade de proteger para que não haja violações dos direitos humanos. Se isso acontece, não estamos cumprindo nosso dever”, ressaltou.

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