'Se há mortos nas ruas, é dever dos países vizinhos clamar por uma solução', diz ex-presidente do Chile
Em entrevista ao site de VEJA, Ricardo Lagos analisou o papel dos países sul-americanos diante da crise na Venezuela, fez um prognóstico do recém-empossado governo de Bachelet e falou sobre outros temas políticos e econômicos do continente
Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile entre 2000 e 2006
“O problema da integração na América do Sul não se resume a melhores estradas e portos, implica também diminuir a burocracia. Não tem sentido ter uma excelente autoestrada ligando La Paz a Arica se os caminhões ficam até 3 horas nas filas de aduanas que só trabalham oito horas por dia”
Desafios de Bachelet – O maior desafio do novo governo será entender e satisfazer as demandas de uma sociedade que já deixou a miséria para trás, afirma Lagos. “O país de 1990, época em que Augusto Pinochet deixou o governo e a democracia assumiu, era um Chile com 42% de pobres. Hoje temos 11%. Na época, o PIB per capita girava em torno de 5.000 dólares, hoje são mais de 15.000 dólares por habitante. O país mudou, as demandas são outras. Aprendemos que é mais fácil diminuir a pobreza do que satisfazer as demandas crescentes da sociedade".
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Na avaliação do ex-presidente, há uma insatisfação com a participação política e com os partidos em geral. Uma das provas disso foi a baixa presença na última eleição presidencial, que no segundo turno teve abstenção de quase 60%. "Há um conjunto de temas políticos e sociais que nos obrigam a repensar a relação entre governados e governantes”, salientou. “Hoje temos no Chile uma sociedade diferente, que sabe muito mais e exige muito mais. São demandas distintas que exigem soluções distintas”.
Dentre as principais demandas está a reforma da educação – promessa de campanha de Bachelet, em resposta aos constantes protestos no país relacionados à questão. Atualmente a maioria das vagas na educação superior no Chile é privada e os financiamentos que o governo concede são considerados insatisfatórios e caros. “Para Bachelet conseguir fazer a reforma educacional, que é muito complicada e requer recursos financeiros, é preciso fazer antes uma reforma tributária. O ministro nomeado para a pasta da Educação, Nicolás Eyzaguirre, é uma pessoa muito capacitada e experiente – foi meu ministro da Fazenda – e, portanto, sabe muito bem das limitações econômicas”, avaliou Lagos.
O ex-presidente acredita que a reforma tributária só avançará se estiver contida em um único projeto de lei e for ”negociada com delicadeza” para ser aprovada pela maioria do Parlamento. Já a mudança na educação vai necessitar de vários projetos de lei compondo um pacote completo para uma reforma profunda, nos moldes que a população exige. “Esses projetos, quase todos, requerem uma maioria qualificada do Parlamento, pois são modificações constitucionais. Então, a aprovação é muito mais difícil, é preciso construir um consenso não apenas com os parlamentares, mas com a sociedade civil. Resumindo, eu creio que não será fácil o trabalho de Bachelet para fazer a reforma na educação”.
Economia chilena – Enquanto o Brasil amargou uma inflação de 5,91% e registrou expansão de 2,3% no PIB em 2013, o vizinho Chile, mesmo com números melhores, também se preocupa com o crescimento de sua economia, como aponta o ex-presidente. “A inflação no Chile está baixa [3,3% nos últimos doze meses, na medição mais recente], não é preocupante neste momento. Temos problemas de crescimento porque tivemos uma desaceleração na economia. Em parte por causa da desaceleração da China, em parte porque a Europa não terminou de se recuperar e, finalmente, porque não nos preparamos para esse momento. Esperamos ter fechado 2013 com crescimento de 4%, talvez 3,8%. Para 2014 as previsões apontam para um crescimento de 3,5%. Seguimos crescendo, mas estávamos nos acostumando a crescer acima de 5%”, disse Lagos, que defende uma diversificação na economia chilena para o país não ser tão dependente de suas exportações de minério – sobretudo o cobre.
Disputas com o Peru – Em janeiro, a Corte Internacional de Haia pôs fim a uma disputa que se arrastava há décadas sobre os limites territoriais marítimos entre Peru e Chile. O tribunal, que é subordinado às Nações Unidas, concedeu ao Peru parte da disputada região do Oceano Pacífico, mas deixou com o Chile a rica região pesqueira da costa. “No Chile não houve satisfação pela sentença, mas iremos acatá-la e respeitá-la. Esperamos que isso acabe com os pedidos do governo peruano. O tratado territorial que temos com o Peru data de 1929 e durante mais de 50 anos eles nunca disseram que havia um problema de divisas no mar. E de repente apareceu este. Esperamos que não apareçam outros”.
Integração da América do Sul – É sabido que um dos grandes entraves da região está na fragilidade de sua infraestrutura, com rodovias sucateadas, portos defasados e aeroportos que se tornaram pequenos demais para suprir a demanda. “Este tema tem de estar na ordem do dia dos líderes da América do Sul. Sempre defendi a necessidade de corredores oceânicos ligando os países da América Latina aos principais portos. Avançamos, mas ainda falta muita coisa”, disse o ex-presidente.
Para Lagos, porém, o problema vai além e reside em outro mal crônico que afeta a região: a burocracia. “O problema não se resume a melhores estradas e portos; implica diminuir a burocracia. Não tem sentido ter uma excelente autoestrada ligando La Paz a Arica [cidade portuária chilena] se os caminhões ficam até 3 horas nas filas de aduanas que só trabalham oito horas por dia”, avaliou. Para melhor ilustrar seu ponto de vista, ele citou um exemplo real e desanimador. “Imagine um caminhão que parte de São Paulo ao Chile, ele será revisado nas aduanas entre Brasil e Paraguai, e depois entre Paraguai e Bolívia, e ainda entre Bolívia e Chile. É um absurdo. Na Europa, a carga é fiscalizada uma única vez e os caminhões ganham passe-livre para circular por qualquer país da comunidade europeia. Perdemos tempo e dinheiro por causa da burocracia”.
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Crise na Venezuela – Juntamente com outros ex-presidentes da região, incluindo seus ex-colegas Fernando Henrique Cardoso e Alejandro Toledo (presidente do Peru entre 2001 e 2006), Lagos emitiu uma declaração defendendo negociações entre o governo e a oposição na Venezuela em uma tentativa de restaurar a paz diante dos conflitos frequentes nos protestos contra o governo duramente reprimidos por Nicolás Maduro. O número de mortos em mais de um mês de manifestações já se conta às dezenas, mas a posição dos países da região segue, no mínimo, tímida.
Para Lagos, "é imperativo que as partes se sentem para conversar civilizadamente e isso está demorando a acontecer”. Ele acredita que os países vizinhos têm o dever de proteger os cidadãos venezuelanos das violações dos direitos humanos. “Nós, latino-americanos, precisamos aprender a resolver nossos conflitos políticos de forma adulta, pacificamente. Se há mortos nas ruas, é dever dos países vizinhos clamar por uma solução. Não é um direito, é um dever. Temos uma responsabilidade no direito internacional, a responsabilidade de proteger para que não haja violações dos direitos humanos. Se isso acontece, não estamos cumprindo nosso dever”, ressaltou.
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