Pular para o conteúdo principal

Venezuela dá outro sentido ao tolerável

Líderes da região não deveriam ser cúmplices silenciosos

 
 
Enquanto escrevo essas palavras na prisão militar de Ramo Verde, em Los Teques, me espanta o tanto que muitos venezuelanos sofreram. Por 15 anos, a definição de "intolerável" na Venezuela declinou progressivamente até que, para nosso horror, nos vimos com uma das taxas de assassinato mais altas do mundo, uma inflação de 57% e uma escassez de produtos de primeira necessidade sem precedentes fora de um período de guerra.

À nossa estropiada economia soma-se um clima político igualmente opressivo. Desde o início dos protestos estudantis, no dia 4 de fevereiro, mais de 1,5 mil manifestantes foram detidos e mais de 50 teriam sido torturados enquanto estavam sob custódia policial. Mais de 30 pessoas, incluindo forças de segurança e civis, morreram nas manifestações. O que começou como uma marcha pacífica contra o crime em um câmpus universitário expôs as profundezas da criminalização da dissidência pelo governo.
Estou preso há mais de um mês. No dia 12 de fevereiro, conclamei os venezuelanos a exercerem seus direitos legais ao protesto e à liberdade de expressão - mas, para fazê-lo pacificamente e sem violência. Três pessoas foram baleadas e mortas naquele dia. Uma análise do vídeo divulgado pelo jornal Ultimas Noticias determinou que os tiros partiram de soldados à paisana.
Depois daquele protesto, o presidente Nicolás Maduro ordenou minha prisão por acusações de assassinato, incêndio criminoso e terrorismo. Para a Anistia Internacional, as acusações parecem "uma tentativa politicamente motivada de silenciar a oposição". Até hoje, não foram apresentadas evidências.
Em breve, mais prefeitos de oposição eleitos por maiorias esmagadoras nas eleições de dezembro se juntarão a mim atrás das grades. Na semana passada, o governo deteve o prefeito de San Cristóbal, onde os protestos estudantis começaram, e também o prefeito de San Diego, que foi acusado de desobedecer a uma ordem para retirar barricadas de manifestantes (os dois foram condenados, respectivamente, a 1 ano e a 10 meses de prisão).
No entanto, não ficaremos em silêncio. Alguns acreditam que denunciar só antagoniza o partido governante, convidando Maduro a agir com maior presteza para nos privar de nossos direitos, além de fornecer uma distração conveniente da ruína econômica e social do país. Esse caminho se assemelha a uma vítima de abusos permanecer em silêncio por temer novas punições.
Mais importante, milhões de venezuelanos não podem se dar o luxo de esperar por mudanças que nunca chegam. Precisamos continuar falando, agindo e protestando. Não podemos permitir que nossos nervos fiquem anestesiados para os consistentes abusos de direitos em curso. Precisamos dar continuidade a uma agenda pelas mudanças. A liderança da oposição esboçou uma série de ações necessárias para avançarmos.
As vítimas de repressão, abusos e tortura, bem como parentes dos que morreram, merecem justiça. Os responsáveis precisam renunciar. Os grupos paramilitares pró-governo, ou "coletivos", que tentaram silenciar os protestos pela violência e intimidação, devem ser desarmados.
Todos os presos políticos e dissidentes que foram obrigados a se exilar em razão do governo, bem como todos os estudantes que foram presos por protestar, devem ser soltos ou ter permissão de voltar ao país. A isso deve-se seguir a restauração da imparcialidade de importantes instituições civis, entre as quais o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e o Judiciário.
Para colocar nossa economia no rumo certo, precisamos investigar as fraudes cometidas por nossa comissão cambial. Pelo menos US$ 15 bilhões foram canalizados para empresas fantasmas e para propinas no ano passado, uma medida que contribuiu diretamente para a espiral inflacionária e a escassez severa que nosso país vem sofrendo.
Finalmente, precisamos de um engajamento real da comunidade internacional, particularmente na América Latina. A resposta corajosa de organizações de direitos humanos contrasta fortemente com o silêncio vergonhoso de muitos vizinhos da Venezuela. A Organização dos Estados Americanos (OEA), que representa nações do continente, se absteve de qualquer liderança real na crise atual de direitos humanos e no espectro que se avizinha de um Estado falido, apesar de ter sido criada para tratar de questões dessa ordem.
Silenciar é ser cúmplice da espiral descendente do sistema político, da economia e da sociedade venezuelana, para não mencionar a miséria contínua de milhões. Muitos líderes atuais da América Latina sofreram abusos similares em seu tempo e não deveriam ser cúmplices silenciosos dos abusos correntes.
Para os venezuelanos, uma mudança no governo pode ser realizada inteiramente dentro de um arcabouço constitucional e legal. Devemos defender os direitos humanos, a liberdade de expressão, o direito à propriedade, à habitação, à saúde e à educação, a igualdade dentro do sistema judicial e, claro, o direito de protestar. Esses não são objetivos radicais. São os constituintes básicos de uma sociedade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Procurador do DF envia à PGR suspeitas sobre Jair Bolsonaro por improbidade e peculato Representação se baseia na suspeita de ex-assessora do presidente era 'funcionária fantasma'. Procuradora-geral da República vai analisar se pede abertura de inquérito para apurar. Por Mariana Oliveira, TV Globo  — Brasília O presidente Jair Bolsonaro — Foto: Isac Nóbrega/PR O procurador da República do Distrito Federal Carlos Henrique Martins Lima enviou à Procuradoria Geral da República representações que apontam suspeita do crime de peculato (desvio de dinheiro público) e de improbidade administrativa em relação ao presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL). A representação se baseia na suspeita de que Nathália Queiroz, ex-assessora parlamentar de Bolsonaro entre 2007 e 2016, período em que o presidente era deputado federal, tinha registro de frequência integral no gabinete da Câmara dos Deputados  enquanto trabalhava em horário comerci
Atuação que não deixam dúvidas por que deveremos votar em Felix Mendonça para Deputado Federal. NÚMERO  1234 . Félix Mendonça Júnior Félix Mendonça: Governo Ciro terá como foco o desenvolvimento e combate às desigualdades sociais O deputado Félix Mendonça Júnior (PDT-BA) vê com otimismo a pré-candidatura de Ciro Gomes à Presidência da República. A tendência, segundo ele, é de crescimento do ex-governador do Ceará. “Ciro é o nome mais preparado e, com certeza, a melhor opção entre todos os pré- candidatos. Com a campanha nas Leia mais Movimentos apoiam reivindicação de vaga na chapa de Rui Costa para o PDT na Bahia Neste final de semana, o cenário político baiano ganhou novos contornos após a declaração do presidente estadual do PDT, deputado federal Félix Mendonça Júnior, que reivindicou uma vaga para o partido na chapada majoritária do governador Rui Costa (PT) na eleição de 2018. Apesar de o parlamentar não ter citado Leia mais Câmara aprova, com par
Estudo ‘sem desqualificar religião’ é melhor caminho para combate à intolerância Hédio Silva defende cultura afro no STF / Foto: Jade Coelho / Bahia Notícias Uma atuação preventiva e não repressiva, através da informação e educação, é a chave para o combate ao racismo e intolerância religiosa, que só em 2019 já contabiliza 13 registros na Bahia. Essa é a avaliação do advogado das Culturas Afro-Brasileiras no Supremo Tribunal Federal (STF), Hédio Silva, e da promotora de Justiça e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis) do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Lívia Vaz. Para Hédio o ódio religioso tem início com a desinformação e passa por um itinerário até chegar a violência, e o poder público tem muitas maneiras de contribuir no combate à intolerância religiosa. "Estímulos [para a violência] são criados socialmente. Da mesma forma que você cria esses estímulos você pode estimular