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Jair Bolsonaro24 de agosto de 2020 | 06:33

Governo Bolsonaro desmonta ação de combate ao abuso de crianças

BRASIL
O governo Jair Bolsonaro excluiu do último relatório direitos humanos, o Disque Direitos Humanos, as informações sobre o encaminhamento e as respostas dadas a todas as denúncias de violações recebidas, entre elas as de violência infantil, feitas aos órgãos de apuração e proteção.
Divulgado em maio deste ano em referência a 2019 pelo Ministério da Mulher, da Família e de Direitos Humanos, o relatório do Disque 100 informa que foram formalizadas 86.837 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, que representam 55% do total recebido e uma alta de 13,9% em relação ao ano anterior.
O relatório é elaborado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos com base em denúncias feitas ao Disque 100, canal criado para atender os relatos de violação de direitos humanos no país.
O maior volume de casos diz respeito a negligência (38%), enquanto a violência sexual representa 11% das denúncias. É computada ainda a incidência de violência psicológica (23%), violência física (21%), exploração do trabalho (3%), entre outras.
O relatório aponta ainda que 52% das violações ocorrem na casa da criança ou do adolescente —cenário que especialistas temem se agravar com a pandemia de coronavírus e a quarentena. De modo geral, 69% dos atos ocorrem com frequência diária.
A questão é que não se sabe que encaminhamento foi dado às denúncias recebidas —nem mesmo se alguma providência foi tomada. Questionado pela Folha, o ministério respondeu que a exclusão desses dados foi uma “decisão editorial”, mas que todas as denúncias recebidas são encaminhadas. (leia abaixo).
Nos relatórios dos anos anteriores, o índice de resposta é baixo. Em 2018, apenas 13% das denúncias encaminhadas tiveram resposta, na média dos diversos órgãos encarregados de receber e apurá-las, bem como de proteger os violados —como conselhos tutelares, órgãos de segurança pública , corregedorias e outros.
Os conselhos tutelares, embora tenham sido o órgão mais acionado (26,3%), tiveram o pior índice de resposta (10%) naquele ano. Em 2017, 15% do total de denúncias recebidas tiveram resposta, também na média.
“Diante do caso da menina de 10 anos que teria sido violentada por 4 anos, essa questão dos retornos e encaminhamentos se torna ainda mais crucial”, afirma o advogado Ariel de Castro, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe).
“Demonstra que temos um sistema de proteção de crianças e adolescentes que não as protege. Um sistema falho e precário, com omissões ou até conivências de familiares, vizinhos e outros membros da comunidade. Mas que também os órgãos de proteção, de apuração e de recebimento de denúncias não funcionam adequadamente.”
Para ele, a falta de retornos e providências gera descrédito e desqualifica o sistema do Disque 100. “Os denunciantes perdem a confiança no sistema, desestimulando denúncias e deixando as crianças e adolescentes mais em risco ainda”, acrescenta. “Para quê denunciar se não serve pra nada? Providências não são tomadas, ou se são, não se sabe. Devemos presumir que as vítimas continuaram em risco.”
O advogado faz referência ao caso da criança capixaba de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada pelo tio de forma recorrente por quatro anos. Por atender duas das três condições previstas na lei —gravidez resultante de estupro e com risco de morte para a mãe—, a criança conseguiu fazer o aborto nesta semana. O tio foi preso.
Apesar de haver decisão judicial a favor, o procedimento não foi autorizado pelo Hospital Universitário do ES, e foi realizado em uma maternidade pública no Recife (PE), em meio à mobilização de movimentos religiosos contrários ao aborto, que protestaram diante do hospital e pressionaram a família a voltar atrás na decisão de abortar.
Como medida protetiva depois que seu nome e endereço foram vazados, a criança entrou na última quinta-feira (20) no Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas no ES, destinado a testemunhas e vítimas de crimes coagidas ou expostas a grave ameaça.
DESMONTE
“A questão do monitoramento sempre foi um desafio, até pelo tamanho do nosso país e pelas condições concretas de trabalho”, afirma a assistente social Karina Figueiredo, da ONG Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes). “Muitas vezes o conselho tutelar não tinha internet para receber e-mail.”
Por isso, os Ministérios Públicos estaduais passaram a também receber as denúncias.
Na condição de quem participou da estruturação do Disque 100 como serviço sob responsabilidade do governo federal em 2003, ela descreve o processo pelo qual o sistema passou sob o governo Bolsonaro como de “precarização” e “desmonte”.
“A fala desse governo, quando ele chegou, era desconsiderar tudo que havia sido feito anteriormente. Começaram a criar um monte de questões para desqualificar o Disque, diziam não servia para nada, que tinha de ser revisto, reestruturado, que se demorava não sei quantas horas para falar”, afirma Figueiredo, secretária-executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes.
“Disseram que iam rever, e até agora não vimos nada de concreto” , afirmou. “Não que o Disque fosse perfeito. Mas a gente precisava era de um diálogo para tentar um aprimoramento e não desqualificar o que foi feito antes.”
Embora o combate ao abuso secual de crianças seja a principal bandeira da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), ela mesma vítima de abuso na infância, o governo Bolsonaro, em decreto do ano passado, extingiu a comissão intersetorial de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes.
“Com isso, perdemos nossa interlocução”, diz Figueiredo sobre o órgão, que reunia diferentes ministérios, organismos internacionais, entidades da sociedade civil e outros. .
Outro problema foi a transferência da estrutura do Disque 100 de Brasília para Salvador, durante o governo Michel Temer, em 2015. A justificativa, segundo Figueiredo, foi a de que o custo do aluguel e da mão-de-obra seria mais barato. “Isso contribuiu para que o Disque ficasse mais precarizado”, avalia.
A central de atendimento deixou de estar sob responsabilidade do governo federal e passou a ser operacionalizada por execução indireta, mediante contrato administrativo, ou seja, por um prestador de serviços.
Para a socióloga Graça Gadelha, consultora do Instituto Aliança, isso é preocupante. “Por mais honesto e correto que esse prestador seja, isso é uma política de Estado. Dados, sistemas de informação, principalmente para esse segmento, que tem prioridade absoluta, você não pode entregar”, afirma.
“O governo simplemente entrega a responsabilidade pela compilação e consolidação desses dados a essa prestadora, e ela muda o sistema e a metodologia.”
Gadelha avalia ainda que a falta de registro dos encaminhamentos é apenas um aspecto de um problema de base estrutural.
“A questão é que não temos um fluxo coordenado, a partir de um sistema nacional de informações, que unifique toda a base de dados das diferentes portas de entrada relacionadas às violações de direitos de crianças e adolescentes.”
Segundo ela, isso faz com que haja problemas como incongruências nas categorias com que as denúncias são fichadas, registros de uma mesma denúncia em diferentes portas de entrada, referenciamento a instâncias que já a haviam recebido etc. “Há furos na parte conceitual e na parte operacional”, afirma.
Não é a primeira vez que o relatório do Disque 100 causa polêmica. Em junho, a Folha revelou que os dados sobre violência policial haviam sido excluídos do texto. Na época, o governo argumentou que a base de dados continham inconsistências e que os números seriam divulgados após estudo.
OUTRO LADO
Em resposta aos questionamentos da Folha, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou que todas as denúncias recebidas tanto pelo Disque 100 quanto pelo Ligue 190 (Central de Atendimento à Mulher) e a própria Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos “são encaminhadas aos órgãos da rede de proteção, seja ele um órgão de autuação, acompanhamento ou mesmo conhecimento”.
Afirmou ainda que a não apresentação das informações sobre encaminhamento no relatório como nos anos anteriores “foi uma opção editorial adotada pela ouvidoria”.
“O objetivo foi a divulgação de dados gerais, já que a ouvidoria está em período final da construção de um painel interativo que consolidará todas as informações de forma pormenorizada, no qual, inclusive, poderão ser feitos cruzamentos variados acerca das violações de direitos humanos, dentro da política de transparência e dados abertos. O painel será aberto ao público, com publicação prevista para setembro.”
Quanto aos baixos índices de retorno dos anos anteriores, “a explicação é que não há obrigatoriedade dos órgãos destinatários em realizar esse processo inverso”, disse o ministério. “Não obstante a isso, ao longo de 2020 várias ações vêm sendo adotadas por essa ouvidoria para que tal situação seja revertida, como, por exemplo, a realização de Acordos de Cooperação Técnicas com esta finalidade”.
Folha de S.Paulo

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