O fracasso da pacificação
O site de VEJA fez um balanço dos dez anos de José Mariano Beltrame no comando da secretaria de segurança do Rio de Janeiro, que ele prometeu pacificar
Sua segunda missão será motivar uma tropa que, além de todas as agruras do ofício, deverá conviver com a falta de pagamento a partir do mês de dezembro, em virtude da grave crise financeira vivida pelo estado. Sá terá de lidar com a dívida de cerca de 1 bilhão acumulada na pasta e ainda tentar domar a ascendente criminalidade fluminense.
VEJA fez um raio-X dos dez anos da gestão do mais longevo secretário de segurança do Rio. Beltrame dividiu seu comando em duas fases: pré e pós-UPP. O discurso de antes era o do confronto. A partir de 2010, no auge da euforia com a tomada dos Complexos do Alemão e da Penha, passou a repetir a ideia da polícia de proximidade. Não passou de uma ideia, que seria enterrada de vez junto com o episódio do assassinato do pedreiro Amarildo de Souza por policiais da Rocinha, cartão-postal do projeto de pacificação.
A seguir, a era Beltrame em números.
QUEDA DE HOMICÍDIOS
A redução do número de assassinatos no Rio de Janeiro é o principal mérito da gestão Beltrame. Quando ele assumiu, em janeiro de 2007, pegou a pasta com 6 323 assassinatos — taxa de 41,3 para cada grupo de 100 000 habitantes. Em 2015, esse índice havia caído para 25,5. A diminuição de quase 16 pontos na taxa é a segunda melhor marca da história do Rio, ficando atrás apenas da do general Nilton Cerqueira, que como secretário de segurança do governador Marcello Alencar, nos anos 1990, cravou uma queda de 22 pontos no mesmo medidor (mas ainda patinando em 40 assassinatos para cada 100 000 habitantes).
Beltrame atribui tal redução ao projeto UPP. Sem dúvida que contribuiu para a diminuição dos homicídios na capital, mas a estruturação da Divisão de Homicídios (DH) fluminense causou um efeito ainda mais representativo.
Só para comparar, São Paulo, investindo na área de inteligência, reduziu ainda mais o famigerado índice — sem UPP. Ano passado, mesmo com uma população quase três vezes maior do que a do Rio, São Paulo registrou 238 homicídios a menos do que o estado vizinho.
POLÍCIA QUE MATA
Os números mostram a mudança de estratégia de Beltrame ao longo dos dois governos de Sérgio Cabral e dos dois anos de Luiz Fernando Pezão. Em 2007, quando assumiu a secretaria, a polícia registrou 1 330 autos de resistência (mortes de suspeitos em confronto), um recorde dos últimos 25 anos. No período até 2010, foram contabilizados 4371 dessas mortes — mais do que o triplo na comparação com 2007. É um indicador da truculência policial.
A implantação de uma polícia com a cultura da proximidade teve como objetivo diminuir tais mortes. E elas a princípio diminuíram (ainda que os dados de confrontos tenham aumentando consideravelmente, inclusive em territórios de UPP). O menor índice é de 2013. De lá pra cá, no entanto, a curva voltou a subir. Houve 645 casos em 2015 e, somente entre janeiro e agosto deste ano, registrou-se 547 episódios de confrontos com morte do suspeito.
GUERRA NO CAMPO DA PAZ
Com tantas novas UPPs sendo inauguradas, a fábrica de formação de policiais militares não podia parar. Foram formados mais de 12 000, deles praticamente todos alocados nas áreas ocupadas. Sem tempo hábil para suprir a crescente demanda, o treinamento acabou deficiente.
Ainda assim, houve um sucesso inicial do programa-vitrine do governo, que culminou na histórica cena de marginais fugindo em bando no Complexo do Alemão, em novembro de 2010. O Rio de Janeiro experimentou, nos dois anos seguintes, tempos de trégua. Os menores índices de criminalidade das últimas décadas foram registrados neste período.
Mas, à medida que ia expandindo, a UPP revelava suas limitações. Para evitar confrontos em incursões policiais, as operações eram anunciadas e, como não era de se esperar algo diferente, os criminosos se bandeavam para fugia outras áreas da cidade, carregando seus arsenais de guerra. As quadrilhas de sempre só mudavam de endereço, transferindo também a violência de lugar.
Conforme os bandidos se adaptavam à convivência com as UPPs, terminavam por dominar o próprio território dito pacificado.
Os números não estão atualizados porque, em junho do ano passado, o Instituto de Segurança Pública (ISP) não trouxe mais a público uma estatística sequer de favelas com UPP. Um dado, porém, dá o tom do problema: desde o início do programa, 470 policiais foram feridos em confrontos nessas áreas. Quarenta morreram.
INVESTIMENTO SOCIAL
Beltrame queixava-se de que a polícia havia entrado sozinha nas favelas com UPP. Segundo ele, a “anestesia havia sido dada, mas a cirurgia no paciente acabou sendo mal feita”, pela ausência de outros serviços que deveriam ter ingressado nos morros junto às UPPs. A crítica causava mal estar dentro do próprio governo, principalmente na prefeitura.
Foi o prefeito Eduardo Paes que bancou parte dos salários dos policiais formados para as UPPs e gastou 2,1 bilhões de reais na construção de creches, escolas, clínicas da família e áreas de lazer nas favelas ocupadas. Os governos federal e estadual também investiram quase 4 bilhões nessas áreas.
Nada indica, portanto, que faltaram verbas. O que atrapalhou decisivamente a presença de serviços básicos em favelas com UPP foi o próprio desdobramento do programa. Coleta de lixo, por exemplo, passou a ser dificultado pelos constantes tiroteios. O programa de atendimento médico do Sesi nessas áreas também acabou praticamente suspenso em razão da violência.
RECORDE DE ASSALTOS
A estatística de roubos revela o mais grave efeito colateral das UPPs. O ano de 2014 encerrou com o histórico recorde de 158 078 assaltos, número que será batido em 2016, já que somente até o mês de agosto o número de roubos soma 131 198. Dá uma média de uma ocorrência a cada três minutos.
A situação está tão difícil de controlar que, em agosto, mesmo com a Olimpíada, o aparato de 50 000 homens nas ruas não foi suficiente para impedir que houvesse 17 255 assaltos, fazendo deste o mês com mais roubos na história fluminense. Um dos indicadores mais assustadores é o de roubo de carga. EM 2006, antes de Beltrame, houve 4566 ataques a caminhões. No ano passado foram 7225.
QUEDA NA APREENSÃO DE ARMAS
Os números de armas apreendidas vêm caindo de forma significativa. Beltrame sempre criticou a Polícia Federal por não impedir a entrada de armas nas fronteiras, especialmente com Paraguai e Bolívia. Numa reunião em Brasília, o diretor da PF, Leandro Daiello, chegou a fazer ironia, dizendo que o secretário do Rio dizia que a PF não conseguia cuidar dos 17 000 quilômetros de fronteira, enquanto ele não cuidava de duas entradas da Favela da Rocinha. Os dois estavam certos.
Em 2012, Beltrame chegou a extinguir a Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae) após uma briga política com a Polícia Civil. A medida atrapalhou as investigações sobre os principais fornecedores de armas para traficantes cariocas. Em seu primeiro dia no posto, Roberto Sá, sucessor de Beltrame, acenou com a ideia de reativar a unidade especializada.
FORTUNA ANTES DA CRISE
Beltrame foi o secretário que mais teve dinheiro em mãos para gastar, em torno de 40 bilhões de reais em uma década. Quando assumiu, em janeiro de 2007, o orçamento da segurança era de quase 1,7 bilhão de reais, valor que saltou para 5,6 bilhões no ano passado, com previsão de 6,7 bilhões para 2016.
Um gráfico com base nos números da Secretaria de Planejamento mostra que Beltrame optou por investir mais na contratação de policiais militares do que no setor de inteligência. A PM, que detinha 64,5% do bolo em 2006, passou a representar 72,8% esse ano — 96% deste dinheiro é para o pagamento de folha salarial. Já a Polícia Civil, que tem a atribuição de investigar, viu os investimentos na corporação minguarem de 33,4% para 25% no período.
Só a máquina da secretaria de Segurança consumiu quase 310 milhões no ano de 2014, época em que quase 500 PMs eram lotados lá. Roberto Sá, o novo secretário, prometeu reduzir esse efetivo para colocar policiais de volta às ruas.
Beltrame fez alguns maus negócios. Gastou 3 milhões de reais e abandonou o sistema de detecção de tiros que havia sido instalado antes da Copa das Confederações, em 2013; gastou mais de 6 milhões em carabinas que jamais funcionaram e ainda abandonou as cabines blindadas adquiridas. Também pagou três vezes o preço de um carro zero quilômetro pelo contrato de manutenção das viaturas da PM. Este último contrato vem lhe rendendo inclusive dor de cabeça. O ex-secretário virou réu da ação de improbidade administrativa, na qual o Ministério Público pede a devolução de 130 milhões aos cofres públicos.
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