Das muitas mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, o chefe da força-tarefa da Lava-Jato, a mais comprometedora até o momento é a que mostra Moro passando ao procurador a dica de duas testemunhas que teriam informações relevantes sobre negócios envolvendo a família do ex-presidente Lula. Para a maioria dos especialistas, essa parceria investigativa teria beneficiado uma das partes envolvidas no processo — no caso, os acusadores, o que seria ilegal. Seguindo a orientação do juiz, Dallagnol procurou as pessoas citadas, mas elas teriam se recusado a colaborar. Em resposta a Moro, o procurador chegou a sugerir que se forjasse uma denúncia anônima para justificar a expedição de uma intimação que obrigasse as testemunhas a depor no Ministério Público.
O diálogo entre Moro e Dallagnol foi publicado pelo site The Intercept Brasil há três semanas, mas o nome das testemunhas não havia sido divulgado. VEJA localizou os dois personagens ocultos da história. O primeiro deles é o técnico em contabilidade Nilton Aparecido Alves, de 57 anos. Na mensagem, o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba relata ao procurador ter recebido a informação de que uma pessoa fora instada “a lavrar escrituras de transferências de propriedade de um dos filhos do ex-presidente”. “Seriam dezenas de imóveis”, segundo Moro. Durante o governo do petista, pipocaram na internet inúmeros boatos sobre supostos negócios imobiliários envolvendo o clã presidencial. Pela primeira vez, havia uma testemunha com nome, sobrenome e telefone. Vinte e quatro minutos depois da mensagem, Dallagnol escreve que tentou fazer contato com o técnico em contabilidade, mas a testemunha “arriou”, “disse que não tem nada a falar” e, “quando dei uma pressionada”, relata o procurador, “desligou na minha cara”.
Nilton Aparecido tem um escritório no centro de Campo Grande (MS). Ele é conhecido no estado por fazer negócios, nem sempre lícitos, relacionados a terras. Em agosto do ano passado, agentes do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) em Mato Grosso do Sul fizeram uma operação de busca e apreensão na casa de Nilton e recolheram escrituras, agendas, extratos bancários e pen drives. Mas essa investigação não tem relação com a da Procuradoria da República no Paraná. O técnico em contabilidade é acusado de corrupção por negociar pagamento de propina com uma organização criminosa especializada em fraudar impostos que desfalcou o Estado em 44 milhões de reais entre 2015 e 2018. Abordado pela reportagem de VEJA na tarde de quarta-feira, Nilton foi evasivo. “Não sei por que meu nome está nessa história. Alguém deve ter falado alguma coisa errada”, disse. Indagado sobre se teria informações referentes aos filhos de Lula e se havia prestado depoimento aos procuradores da Lava-Jato com relação ao tema, ele encerrou a conversa dizendo que não iria declarar mais nada.
Na mensagem publicada pelo The Intercept Brasil, logo depois de tentar, sem sucesso, falar com Nilton, Deltan Dallagnol diz a Sergio Moro que estava pensando em intimar o técnico em contabilidade, se necessário, “até com base em notícia apócrifa”. Moro concorda em formalizar a intimação, mas não fica claro se ele avalizou a ideia de forjar a origem da denúncia. O juiz sugere a Dallagnol que procure o homem que ouviu a história do técnico em contabilidade, e, de novo, passa as coordenadas — o segundo personagem oculto da história, também localizado por VEJA. Trata-se do empresário Mário César Neves, dono de um posto de gasolina também em Campo Grande. Ele confirmou que, na época, em dezembro de 2015, um representante do Ministério Público Federal entrara em contato para pedir-lhe informações sobre o técnico em contabilidade Nilton Aparecido. “O pessoal do Ministério Público me ligou, não sei mais o nome da pessoa, mas ela queria saber quem era o Nilton, que serviços ele prestava e como poderia encontrá-lo”, contou o empresário. Questionado sobre se ouvira do técnico em contabilidade algo referente a negócios do filho do ex-presidente, o empresário também arriou. Disse que desconhecia o assunto. Ele, porém, confirma que repassou ao Ministério Público o endereço e o telefone de Nilton. “Eu soube que o Nilton foi chamado para prestar depoimento logo depois dessa ligação para mim”, diz Mário. O empresário acrescenta que soube disso por meio de funcionários do escritório de Nilton, que trabalha para ele há mais de quinze anos. Se for verdade, a situação de Moro complica-se ainda mais do ponto de vista jurídico. A comprovação de que o Ministério Público, de fato, não apenas ouvia, mas seguia suas orientações, reforça a tese de que, quando magistrado, Moro abandonou a posição de imparcialidade para instruir um dos lados da ação, algo considerado ilegal pelo Código de Processo Penal. Embora permaneça com apoio popular — e exista até uma manifestação marcada para este domingo (30) —, o ministro está com a imagem de herói arranhada.
Essa e outras mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil, comandado por Glenn Greenwald, levaram a defesa do ex-presidente Lula a reforçar um pedido de suspeição de Moro que havia sido feito à Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). O princípio está escorado na lei: quando um juiz aconselha qualquer uma das partes, todo o processo pode ser anulado. As mensagens com as orientações de Moro para que o Ministério Público fosse atrás de evidências contra o ex-presidente, mesmo que tenham sido obtidas de maneira ilegal, de acordo com o recurso apresentado pelos advogados de Lula, comprovariam a parcialidade do juiz. Se o recurso fosse aceito, o processo que condenou o ex-presidente a oito anos e dez meses de prisão por ter recebido propina voltaria à estaca zero e o petista seria posto em liberdade. Na terça-feira, a Corte rejeitou discutir o mérito do pedido de suspeição. O ministro Gilmar Mendes disse que não havia tempo hábil para analisar as novas acusações contra o ex-juiz.
Na mesma sessão, no entanto, Mendes propôs uma alternativa: conceder uma liminar para garantir liberdade provisória a Lula até que se julgasse se a atuação de Moro foi comprometida. O ministro Ricardo Lewandowski acolheu a proposta, mas outros três juízes — Cármen Lúcia, Edson Fachin e Celso de Mello — negaram o recurso, impondo ao ex-presidente a 14ª derrota desde que foi preso, em abril de 2018. Lula ainda sofreria outras duas. No mesmo dia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) retirou de pauta o recurso que discutia se ele já tem direito de cumprir pena em regime semiaberto. O julgamento deve ser retomado em agosto. No Paraná, o juiz Luiz Antônio Bonat mandou congelar até 78 milhões de reais em bens do ex-presidente. No segundo semestre, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) vai decidir se confirma a condenação do ex-presidente no processo que envolve o pagamento de propina por meio de melhorias em um sítio frequentado por ele em Atibaia (SP) e que, na verdade, seria de sua propriedade. Caso seja confirmada a condenação de doze anos e onze meses de prisão, a primeira e a segunda sentenças se somarão e ele não deixará a cadeia antes de 2021. Por isso, todas as esperanças de Lula agora estão depositadas na suspeição de Moro e na anulação dos processos. Será uma briga jurídica e tanto. Afinal, outras instâncias confirmaram a sentença de Moro.
Até aqui, a Lava-Jato tem preferido o silêncio (ou pronunciamentos oficiais, em vídeos e notas) em relação ao episódio. VEJA encaminhou oito perguntas à força-tarefa em Curitiba. Perguntou se os procuradores intimaram e ouviram formalmente o técnico em contabilidade Nilton Aparecido Alves ou o empresário Mário César Neves, que argumentos utilizaram para procurar as duas testemunhas e quem foi o responsável pela tomada dos depoimentos. Até o fechamento desta edição, não houve resposta. O contato não foi por Telegram.
Colaborou Laryssa Borges
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