Dá para acreditar que o carvão ainda é a matriz responsável por quase 40% da produção energética da Alemanha?
Dá para acreditar que se Vladimir Putin resolvesse “fechar a torneira” do gás, como já fez com países mais fracos, a Alemanha perderia 35% do seu abastecimento?
E dá para acreditar que Angela Merkel, formada em físico-química e doutora em química quântica, resolveu acabar com a energia nuclear que proveria uma parte das necessidades energéticas prementes de seu próprio país?
São todas questões sérias, englobadas naquele complicado e vital capítulo da vida das nações chamado geopolítica.
Foi por causa da geopolítica que a Alemanha engoliu em seco e enfiou a viola no saco quando os Estados Unidos deram ordem de apreender as centrífugas de enriquecimento de urânio compradas pelo Brasil na Universidade de Göttinger em 1957.
Quem pode mais, chora menos. O acordo nuclear entre a Alemanha e o Brasil – sob regime militar, ditadura ou revolução, escolham, tendo Ernesto Geisel como presidente – também encontrou mais do que um obstáculo geopolítico. Fora os conhecidos problemas tecnológicos, operacionais e mais uma longa lista.
Willy Brandt, o primeiro-ministro alemão na época, do Partido Social-Democrata, gostava de Geisel? Ou da África do Sul da discriminação racial oficial, com quem a Alemanha também tinha um programa de cooperação nuclear?
Seja qual for a resposta, os fatos eram os seguintes: a Alemanha precisava exportar reatores nucleares e os países mencionados queriam não só tê-los como dominar o ciclo completo (detalhe: a África do Sul foi além e produziu, em segredo, seis artefatos nucleares, depois destruídos, num caso único no mundo).
Sem energia ou com energia muito cara, os países capotam. Como obtê-la e quais concessões fazer são temas de alta complexidade. O Brasil da época, sob o impacto do embargo do petróleo, começou fazendo acordos com o Iraque de troca de automóveis pelo recurso que move o mundo e terminou fornecendo, secretamente pasta de urânio ao regime de Saddam Hussein.
A Alemanha também tem uma boa – no sentido de ampla – ficha nesse departamento.
Agora, em seu último mandato e com a doença misteriosa que a fez ser filmada em cerimônias públicas com tremores incontroláveis, Angela Merkel está pensando no famoso legado, os esforços de políticos em fim de carreira para ficar bem na foto da história.
Num gesto dirigido ao público interno, congelou um programa de vendas de armas para a Arábia Saudita, irritando os parceiros de projeto, Grã-Bretanha e França. Em discurso aos formandos de Harvard, mandou várias indiretas a Donald Trump em seu próprio país.
“Mais do que nunca, nossas ações têm que ser mais multilaterais do que unilaterais”, disse. “Derrubem os muros da ignorância e da intransigência.”
Claro que foi aplaudidíssima. Numa curiosa inversão, Angela Merkel, absurdamente criticada como carrasca que extorquia países inteiros como a Grécia por exigir que pagassem empréstimos, virou ídolo do progressismo depois que abriu as fronteiras da Alemanha à grande onda humana proveniente do Oriente Médio, em 2015.
No seu mais recente gesto de conversão, a senhora Merkel resolveu passar um pito no presidente do Brasil. Quer ter uma “conversa direta” com Jair Bolsonaro. E vê com “grande preocupação” a situação “dramática” em matéria de meio ambiente e direitos humanos no Brasil.
Estas expressões sem vasos conectantes com a realidade foram usadas em resposta a perguntas de Anja Hajduk, que é da turma LBGT do Parlamento alemão e deputada pelo Partido Verde. Na última eleição, houve dois fenômenos simultâneos e antagônicos: o aumento de votos para a extrema-direita e para os verdes.
A direita tradicional, da qual Angela Merkel ainda faz parte nominalmente, vem retrocedendo. A sucessora de Angela Merkel, Annegret Kramp-Karrenbauer, além do nome impossível, tem demonstrado um déficit de liderança.
Obviamente, só quando Merkel sair do palco é que será testada de verdade.
A preocupação dos alemães por temas ambientais é real e se reflete na quantidade extraordinária de recursos investidos em energia limpa. A conta é altíssima, mas em condições adequadas, o conjunto criado por energia eólica, solar, biomassa e outras alternativas já chegou a superar o carvão.
Mas já pensaram o que diriam da situação “dramática” do Brasil se houvesse algo semelhante (o carvão entra com 5% na matriz energética)?
Também não seria um escândalo se o país fosse refém do regime russo e o sustentasse com as maciças importações de gás natural?
E não vamos nem falar em indústrias automobilísticas que fraudam emissões de poluentes ou bancos com ficha suja. O governo alemão não pode ser responsabilizado por estas péssima práticas, ao contrário daqueles que instauraram esquemas oficializados de corrupção e propinas para se manter no poder.
Quando Angela Merkel decidiu monocraticamente acabar com a energia nuclear – o último reator será desativado em menos de três anos -, a reação da opinião pública foi favorável.
A decisão foi tomada depois do tsunami que provocou o desastre na usina nuclear de Fukushima. Na Alemanha, não existem tsunamis nem muito menos reatores russos com desastres embutidos, como o de Chernobyl.
A opiniões sobre as políticas do atual governo brasileiro são formadas por jornalistas como Phillip Lichterbeck, da agência estatal Deutsche Welle.
Repórter aplicado e com grande conhecimento do território brasileiro, ele escreveu o seguinte: “Na verdade, o Brasil está caminhando para transformar seu meio ambiente num inferno. Um inferno de soja, pastos, eucalipto, cana-de-acúcar e lama da indústria de mineração”.
Como o Brasil de repente resolveu se autodestruir, segundo o correspondente alemão?
“A destruição do meio ambiente brasileiro parece ser um dos principais projetos do novo governo. Ele está numa missão mefistofélica: quer acabar com as boas práticas. Com os direitos humanos. Com a ciência. Com os projetos de emancipação. Com o próprio pensamento esclarecido.”
Até pelos padrões do jornalismo mais politizado e ideológico, seria um absurdo escrever tautologias tão definitivas. Sem contar que, mesmo que quisesse, nenhum governo brasileiro teria competência para fazer tantas maldades absolutas como as descritas pelo correspondente, talvez influenciado por uma visão de mundo moldada pela eficiência alemã.
E sem contar que Lichterbeck chamou o governo de Bolsonaro de, literalmente, diabólico.
Em outro artigo, ele comparou o “anti-intelectualismo” à Inquisição- outra hipérbole tirada do baú de distorções ideológicas absurdas.
E tem mais: “Os inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia.”
Os brasileiros certamente se lembram dos bons tempos onde todo mundo queria Kant. Ou seria Odebrecht?
Para lembrar o nobre prussiano: “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”.
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