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Sergio Fausto: Esperando a Odebrecht

Não pode haver sociedade decente fora do império da lei, igual para todos

Por: Augusto Nunes             
Publicado no Estadão
Ao contrário de Godot, personagem do dramaturgo Samuel Beckett, ela chegará: a delação premiada de aproximadamente 50 executivos da Odebrecht e de membros da família que controla a companhia virá à luz nos próximos meses. Não será o dia do Juízo Final para os cerca de 200 políticos que, diz-se, são mencionados nos depoimentos feitos ao Ministério Público. Haverá situações variadas: quem recebeu recursos de caixa 2 e praticou crime de lavagem de dinheiro e/ou corrupção; quem recebeu esses recursos sem cometer tais crimes; quem os cometeu em benefício de financiamento de campanha própria ou de seu partido e/ou de seu enriquecimento pessoal, etc. Caberá à Justiça individualizar cada caso e as penas respectivas, quando couberem, respeitado o devido processo legal. E à sociedade, formar juízo a respeito da responsabilidade de cada um(a) do(a)s acusados(as).
A despeito da diversidade dos casos, as delações da Odebrecht confirmarão a existência de um sistema de corrupção político-empresarial que se entranhou nos partidos e no Estado. Mais: mostrarão que esse sistema operou em governos de várias colorações partidárias, nos níveis nacional, estadual e municipal, e em favor de políticos de diversas siglas, embora o PT tenha sido seu principal articulador e beneficiário. A confirmação do ecumenismo do sistema terá duas consequências importantes: jogará uma pá de cal na ideia da seletividade partidária da Lava Jato e porá o PSDB e outros partidos que se opunham ao governo anterior na posição de acusados, e não de acusadores. A reação do PT à Lava Jato oferece insuperável exemplo de como não enfrentar essa situação.
Compartilho a preocupação de quem teme os efeitos desse anunciado terremoto político sobre o atual governo, que mal começa a resgatar o País do poço cavado pelo anterior. Temo também a eventual inviabilização jurídica e/ou política de lideranças que farão falta ao País pela experiência, pelo conhecimento e pela competência inegáveis que têm.
Na política, à diferença da economia, nem sempre a destruição dos incumbentes leva ao progresso – o economista austríaco Joseph Schumpeter cunhou a expressão “destruição criativa” para se referir ao avanço do progresso técnico no capitalismo pela emergência “disruptiva” de novas empresas e novos empreendedores. A substituição de uma geração de líderes políticos por outra, principalmente quando os partidos não cuidaram antecipadamente da necessária renovação de seus quadros, será complicada.
O maior risco, porém, é que, em nome da governabilidade do País e da estabilidade do sistema político, prevaleça novamente alguma forma de autoproteção dos “donos do poder”. A democracia depende, em última instância, de o povo acreditar que eleições, partidos e congressos não são um jogo que serve apenas aos interesses dos que jogam e pagam o jogo. Essa crença está por um fio. Se desabar, será difícil reerguê-la e o cenário estará pronto para demagogos e messiânicos.
Diante desse risco os intelectuais se veem diante de um desafio. Enquanto a corrupção era um mal imputável exclusivamente às oligarquias atrasadas (Collor e seu operador PC Farias, para dar um exemplo), a vida era mais fácil. Quando as investigações da Lava Jato começaram a revelar que o PT havia organizado um esquema de corrupção nunca antes visto na História deste país – pela escala e pelo comando superior centralizado –, os intelectuais petistas, com poucas exceções, divorciaram-se definitivamente da realidade para atacar com fé cega o Ministério Público, o Judiciário, a imprensa, ou seja, instituições centrais da democracia brasileira. Todas seriam culpadas. Menos o seu partido, vítima de uma “conspiração das elites”.
Os intelectuais petistas de maior bom senso evitaram abraçar teses estapafúrdias – como a das supostas ligações dos procuradores da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro com o governo americano, imaginariamente interessado em apear o PT do poder para roubar do Brasil as riquezas do pré-sal. Preferiram denunciar a “criminalização da política”, como se os procuradores e o juiz estivessem atentando contra a democracia ao investigar crimes cometidos por políticos do PT e partidos aliados. Esqueceram-se de que quem pratica a corrupção, sendo agente político, é que criminaliza a política, e não quem investiga ou pune essa prática com base em provas produzidas dentro do devido processo.
O sentido de missão revelado pelo juiz e pelos procuradores de Curitiba foi transformado em atributo negativo: seriam “missioneiros”, imbuídos de um cristianismo conservador, ligados à Opus Dei, evangélicos, etc. A “esquerda” passou a estigmatizar um grupo de servidores públicos concursados, bem preparados tecnicamente, empenhados em deslindar um sistema de corrupção comandado por partidos governistas e um oligopólio de grandes empreiteiras. Que beleza!
Se o PSDB quiser um lugar ao sol no lado mais luminoso da política brasileira terá de mostrar que nem todos são iguais. Na avaliação política das culpas e responsabilidades o tribunal terá duas instâncias: a opinião pública e o grosso do eleitorado. Na primeira haverá algum espaço para um debate nuançado sobre o caráter mais ou menos sistêmico ou o grau mais ou menos profundo de práticas de corrupção. No segundo, a exemplaridade, o cortar na carne, a coragem de se arriscar com novas lideranças farão toda a diferença, a depender da extensão e profundidade dos danos causados pelas delações de Odebrecht.
No Brasil oscilamos entre a impunidade e a violência, desigualmente distribuídas. A punição de crimes pela Justiça, respeitado o devido processo legal, é uma das maiores conquistas da civilização. Só se redime quem paga por seus erros. Isso vale para os indivíduos e vale também para um país. Não pode haver democracia, não pode haver sociedade decente, fora do império da lei, igual para todos. Doa a quem doer.

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