O sistema educacional que fez da China uma potência
A íntegra do artigo publicado por VEJA, que analisa em cinco capítulos as razões do sucesso chinês na educação
O mérito é o que conta A China testa com rigor seus estudantes e premia com alvoroço os melhores (Montagem sobre fotos de Eyepress/AP, Stockphoto)
Capítulo 1 – Os Alunos e seus PaisEncontrei Sun Juntao, 16 anos, às 7:30 da manhã perto do ponto de ônibus onde desembarcava, em uma das tantas largas e movimentadas avenidas de Xangai, a maior metrópole chinesa. Estava a caminho de sua primeira aula do dia, de Matemática. À primeira vista, Juntao (na China o prenome vem depois do sobrenome) se parece com um adolescente qualquer: paramentado com as roupas de marcas esportivas compartilhadas por seus contemporâneos do mundo todo, ostentando um ralo bigodinho do qual provavelmente se arrependerá no futuro e falando com aquela mistura de entusiasmo, ingenuidade, determinação e timidez que são próprios da adolescência. Mas dois fatores faziam aquela jornada excepcional, pelo menos para um interlocutor brasileiro.
O primeiro era que acontecia em um domingo. Juntao não estava indo para sua escola, mas sim para uma aula de reforço, ministrada aos fins-de-semana por uma escola particular improvisada que fora estabelecida em um andar do que parecia ser um prédio de escritórios vizinho a uma antiga fábrica desativada. Na recepção, o logotipo da escola mal cobria as marcas de cola da placa do locatário anterior: quando um país está crescendo a 10% ao ano, os sinais da pressa estão por toda a parte. A despeito das instalações modestas e apressadas, as pequenas salas, de menos de trinta metros quadrados, estavam lotadas. Vinte alunos divididos em duas fileiras de mesas retangulares, divididas por um corredor, com três alunos por mesa em quase todas as fileiras. A sala não tinha ar condicionado, TV, microfone ou qualquer aparato tecnológico: só mesas, cadeiras e uma lousa. A aula era ministrada por um professor jovem, de 27 anos.
Sun Juntao: “Se estudar muito, eu posso vir a ser um dos melhores advogados do mundo”
No futuro distante, o desejo de Juntao é ser advogado. Não qualquer advogado: um dos advogados mais famosos do mundo. Depois de se formar na China, pretende fazer um mestrado em Stanford, para então voltar ao país de origem. Mas para alcançar esse sonho do longo prazo, ele precisa cumprir uma meta mais próxima: ter um bom resultado no gao kao, o exame nacional de admissão universitária. Apesar de só ter de fazer o teste ano que vem, Juntao já está se preparando. Em 2012, ele terá de aumentar sua carga de aulas de reforço, passando a estudar inglês também, aos sábados. A nota no gao kao determina a universidade na qual o aluno poderá se matricular.
O segundo fato excepcional neste quadro é que, na verdade, ele não tem nada de excepcional. Não apenas na província de Xangai mas em toda a China, milhões de crianças e jovens passarão seus fins-de-semana freqüentando escolas como essas. Conversei com algumas crianças de dez anos durante minha viagem à China, e mesmo nessa idade elas também já estavam fazendo aulas de reforço. Para a grande maioria delas, essas aulas vêm depois de semanas já muito puxadas. A rotina de Juntao é parecida com as de muitos dos jovens que entrevistei. Ele acorda diariamente às seis da manhã. Enfrenta um trajeto de quase uma hora de ônibus pra chegar a sua escola. Entre às 7:10 e 8:00, lê com seus colegas livros didáticos da matéria que está estudando, em sala de aula, sem professor. Às oito começam as aulas. Perto do meio-dia há uma pausa de uma hora e quinze minutos para o almoço, servido no refeitório da escola. À tarde, mais quatro períodos de aula. Às cinco da tarde ele vai pra casa. Chega por volta das 18:30. Durante uma hora, descansa, toma banho e janta. Aí faz o dever de casa por, normalmente, três horas diárias. Às 22:30 vai dormir, e o ciclo recomeça no dia seguinte. Descanso, só aos sábados, e só por mais alguns meses. Como praticamente todos os jovens que encontrei, exceção feita àqueles da cidade de Shenzhen. Juntao não tem nem nunca teve namorada, não vai nem nunca foi para a balada, nunca consumiu drogas ou fumou. Apesar do embaraço causado à minha tradutora, que só fez a pergunta depois da minha insistência, quando perguntei a ele o que aconteceria se ele, involuntária e inadvertidamente, se apaixonasse por alguém nessa idade, a resposta veio rápida: “Espero até depois do gao kao”.
Essa obsessão dos chineses pelo estudo é o primeiro passo para se entender a notícia, divulgada no fim do ano passado, que abalou profundamente toda a compreensão da educação no mundo: de que Xangai, província chinesa, tinha tirado primeiro lugar em todas as áreas auferidas (Matemática, Ciências e Leitura) no mais importante e respeitado teste internacional de qualidade educacional, chamado PISA. O teste, realizado a cada três anos pela OCDE (o clube dos países desenvolvidos), mede o conhecimento de jovens de 15 anos de idade. Começou a ser realizado no ano 2000 com 32 países (dentre eles o Brasil, que ficou em último lugar ) e, na edição de 2009, contou com 65 participantes (dentre eles, ficamos novamente na rabeira: entre a 53ª e a 57ª posição) . Em suas edições anteriores, o topo do ranking era ocupado pelos suspeitos de sempre: Finlândia, Coréia do Sul, Japão, Canadá etc. O teste confirmava a crença de que renda e qualidade educacional estão intimamente associados: só os países mais ricos do mundo conseguiriam produzir sistemas top de educação. Mesmo no teste de 2009, países de nível de desenvolvimento semelhante ao chinês ficaram muito atrás dos países ricos: na área de leitura, o foco da edição de 2009, a Turquia ficou em 41º lugar, a Rússia em 43º, o México em 48º e o Brasil em 53º. Não é que Xangai se saiu bem, acima do esperado por seu nível de renda. A região ficou em primeiro lugar, com uma dianteira considerável de todos os países desenvolvidos, em todas as áreas medidas.
É verdade que Xangai é uma província e não um país, como a maioria dos outros participantes do teste. Também é verdade que Xangai não é representativo da China como um todo: é sua província mais rica (com renda igual a duas vezes e meia a média chinesa) e também, me confidenciaram à boca pequena alguns oficiais com quem conversei no país, aquela que tem o melhor sistema educacional do país, ainda que ninguém diga por que margem. Mesmo feitas essas ressalvas, o feito é incrível. A renda per capita de Xangai em 2010 foi de onze mil dólares . A Coréia, segundo lugar em leitura, tem renda de quase 21 mil. A Finlândia, terceiro lugar, 44 mil, quase a mesma de Cingapura, quinto lugar. Mais deprimente para nós: a renda média de Xangai é igual à brasileira . E ainda que Xangai seja um pequeno pedaço da China, não estamos falando de uma cidade-estado: a província tem uma área de 6.300 km2 (sete vezes menor que o estado do Rio ), com uma população de 19,2 milhões de pessoas – mais do que 42 dos 65 participantes do PISA. No ensino básico, é uma rede de mais de 1.500 escolas e mais de 1,3 milhão de alunos . E é uma zona bastante complexa: 11% de seus habitantes vivem na zona rural , e 54% dos alunos das primeiras cinco séries são filhos de migrantes , residentes que vêm de outras províncias para trabalhar em Xangai.
O governo de Xangai, e da China em geral, só consegue obter esse nível de devoção à educação em um sistema tão grande e complexo porque o apreço quase obsessivo pelo ensino é um valor compartilhado pela sociedade chinesa. Não é preciso ter um “Big Brother” forçando os alunos a entrarem na linha: os exemplos, e o apoio, vêm de suas próprias casas. A de Juntao é um bom exemplo. Seus pais são humildes. A mãe trabalha em um escritório de contabilidade e o pai é assistente de logística em uma fábrica. Estudaram até o fim do ensino médio. Seus avós maternos são agricultores, os paternos operários – todos chegaram apenas até o fim do ensino fundamental. Os avós tiveram de interromper seus estudos por conta da Revolução Cultural. Os pais não conseguiram ir para a universidade porque não tiraram nota suficientemente alta no gao kao. Juntao, filho único, mora com os pais em uma quitinete de não mais de quarenta metros quadrados. Mas quem dorme no sofá-cama que fica no cômodo que faz as vezes de sala e cozinha são seus pais. O rapaz tem um quarto só para si, para que possa se concentrar nos estudos. Apesar da renda módica dos pais, eles é que pagam as escolas de reforço do filho, e também seus estudos (na China, só os níveis compulsórios de ensino – do primeiro ao nono ano – são gratuitos. Os três anos de ensino médio são pagos, mesmo nas escolas públicas. E mesmo nos níveis gratuitos os pais devem pagar uniforme, transporte e alimentação. O estado dá apenas os livros). Juntao é um bom aluno – média em torno de 7,5 – mas sua mãe sempre diz que ele deveria tirar notas melhores. Mesmo quando tira um 9 ou 10, ela diz “que bom, mas precisa manter esse mesmo nível”. Seus avós, já falecidos, costumavam lhe dizer: “Quando nós éramos jovens, não tivemos oportunidade de estudar. Você, que tem ambiente tão bom, precisa aproveitar e estudar muito.” Certa vez, quando tinha cerca de oito anos, apanhou da mãe por ter tirado uma nota 3. Juntao me diz ter 99% de confiança de que entrará na universidade, sendo o primeiro de sua família a chegar a esse nível. Não é pequena a pressão sobre seus ombros, mas ele sabe que também não é pequena a dedicação de seus pais e avós para que ele hoje tenha condições de chegar lá.
O esforço feito pelas famílias chinesas para dar uma educação de qualidade aos filhos é comovente. Tanto em termos de tempo quanto de dinheiro. Liang Hai, um motorista de Pequim, me disse gastar de 60% a 65% de sua renda com a educação de sua filha, Xiaohan, também de 16 anos, que tem rotina muito parecida à de Juntao: escola em tempo integral e aulas de reforço aos fins-de-semana. Apesar de dirigir todos os dias no caótico trânsito de Pequim, Hai leva e busca a filha na escola de fim-de-semana. Ele está se preparando para gastar ainda mais ano que vem: no ano anterior ao gao kao, imagina que vá gastar até 80% de sua renda com a educação da filha, com mais aulas e tutores. Não é que ele faça isso com prazer: reclamou do tempo e dinheiro envolvidos no processo. Mas sabe que não tem escolha. Todos os outros pais fazem o mesmo, e a competição por vagas nas melhores escolas e universidades é feroz.
O médico Xu Junmin (à esquerda) e seu filho Xu Huaze: entre as qualidades de um bom pai não está a de fazer o filho feliz
Em duas horas de conversa franca, o Dr. Xu me contou de sua própria educação. O esforço requerido para uma pessoa nascida em 1958 (véspera do Grande Salto à Frente) chegar à universidade foi hercúleo. Nasceu e cresceu em um vilarejo na província de Jiangsu, ao norte de Xangai. A maioria de seus cinco irmãos não pôde ir à escola. A família era muito pobre, e foram freqüentes os períodos em que sua única refeição – no café, almoço e jantar – era o kanji, uma mistura de arroz e água. Depois de ir à escola, ele precisava ajudar na colheita do arroz, já que o dinheiro dos pais não era suficiente para bancar sua educação. Até os dezesseis anos, Xu nunca calçou um par de sapatos. Caminhava diariamente cinco quilômetros até sua escola e trabalhava nos campos de arroz de pé descalço. Com dezoito anos se alistou no exército, a única forma de sair do vilarejo (o governo chinês sempre controlou a migração de pessoas, especialmente restringindo o fluxo do campo para as cidades. Até hoje esse controle existe, e os migrantes precisam obter uma autorização de residência do governo local para não serem clandestinos.
Hoje esse controle é menos severo, mas na década de 70 ainda era extremamente rígido). Depois de muitas batalhas, conseguiu entrar na Escola Militar de Medicina e se formar. Como a maioria dos pais de todos os lugares do mundo, Xu diz que poder dar ao seu filho uma vida melhor do que a sua é o seu grande sonho. Ao contrário de muitos outros pais de outros países com histórias mais tranqüilas, porém, o nível de dureza vivenciado por ele faz com que seu nível de exigência em relação ao filho seja mais alto, e a inclinação à complacência seja bem mais baixa. Seu filho, Huaze, é um dos melhores alunos de uma das boas escolas de Xangai, onde vive em regime de internato de segunda a sexta-feira. O fato de morar na escola significa que, além da rotina normal de estudos, precisa voltar para sua sala de aula das 18:30 às 21:15 todos os dias para estudar e fazer deveres de casa, e às 22h todos devem ir dormir. O trabalho é ainda mais árduo e a liberdade, ainda menor. Ao saber dessa rotina e antes de conhecer seu histórico de vida, perguntei ao pai se não achava o dia-a-dia do filho pesado demais. Ele sorriu. “Meu filho reclama por não ter tênis de marca. Eu, na idade dele, ainda não tinha calçado sapato.” Frente às tribulações das gerações dos pais e avós, realmente a vida da maioria das crianças e jovens chineses dos dias de hoje é um melzinho na chupeta.
Se o jovem chinês não for naturalmente ambicioso, é provável que a competição inerente ao sistema se encarregue de o tornar. Seus pais e avós provavelmente também estarão lá para dar um empurrão. E, se tudo isso falhar, é provável que a escola lhe coloque nos eixos.
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