Política
No começo da tarde da quinta-feira, dia 14, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia,
puxou a fila de ministros com o mesmo uniforme da véspera: seu imutável
tailleur branco sob a capa de cetim preto. Na pauta, estava a
continuidade do julgamento da Ação de Inconstitucionalidade 5.058. Havia
grande expectativa em torno da sessão. Os ministros se encaminhavam
para decidir se a Polícia Federal pode, além do Ministério Público,
fechar acordos de delação premiada. A Procuradoria-Geral da República
entrou com a ação, argumentando que somente os procuradores têm poder
para negociar as colaborações. Na manhã anterior, da quarta-feira, dia
13, o ministro Marco Aurélio Mello,
relator do caso, já havia lido seu voto – favorável à Polícia Federal.
Outros cinco o acompanharam, mas cheios de ressalvas e recomendações.
Até
ali, o placar era favorável à Polícia Federal para poder celebrar
acordos de delação, hoje uma prerrogativa exclusiva do Ministério
Público. Marco Aurélio votara a favor de a PF poder assinar acordos com
total independência. “Descabe centralizar no Ministério Público todos os
papéis do sistema de persecução criminal, atuando o órgão como
investigador – obtenção do material destinado a provar determinado fato
–, acusador – titular da ação penal – e julgador – estabelecendo penas,
regimes e multas a vincularem o juízo –, em desequilíbrio da balança da
igualdade de armas”, disse. Em resumo, os procuradores têm poder demais.
Foi acompanhado dos colegas Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Luiz Fux, Rosa Weber e Roberto Barroso concordaram, mas ponderaram que seria necessário um aval do Ministério Público. Só Edson Fachin
se posicionou totalmente contrário à possibilidade. “Quando a
colaboração se insere no contexto negocial, que envolve em nome do
Estado a punição, revela-se inconstitucional o sentido de atribuir-se à
autoridade policial o poder de disposição.”
Mas
logo no começo da sessão da quinta-feira, Marco Aurélio pediu de volta a
palavra. Chamou as divergências dos colegas de “dispersão inusitada”.
“Devemos buscar tanto quanto possível um Supremo como ele é, com todas
as cadeiras ocupadas.” Marco Aurélio referia-se à ausência de Ricardo Lewandowski, afastado por licença médica, e de Gilmar Mendes,
em viagem aos Estados Unidos. “Por isso, faço a proposição de adiar-se
para o início do ano judiciário de 2018 a conclusão deste julgamento.”
Diante da sugestão de deixar o Brasil esperando por mais essa decisão,
Cármen Lúcia voltou-se ao decano Celso de Mello,
próximo na lista para proferir seu voto. “A matéria é realmente
importante, extremamente delicada, e ela reclama e impõe um julgamento
por um tribunal completo em sua composição”, disse o decano. “E que nem
se diga que com isso se objetive uma manipulação de quórum. Muito pelo
contrário.” Os ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes ainda
fizeram breves apartes. A ministra Cármen Lúcia declarou então o
adiamento do julgamento e avisou que voltará a pautá-lo “em momento
oportuno”. Vida que segue.
A não decisão do Supremo, no entanto, mantém um véu de insegurança jurídica sobre as delações premiadas. Convertidas no mais poderoso instrumento de investigação, responsáveis pelo sucesso da Lava Jato na demolição do mais efetivo conluio de corrupção entre empresários e políticos encastelados no alto do poder no país, as delações se tornaram fundamentais para conseguir quebrar a barreira eterna da impunidade no Brasil. Sua fragilidade, portanto, vai além da questão jurídica, das discussões entre investigadores e dos conflitos de ideias entre juristas. Deixar as delações em suspenso é uma ameaça à Lava Jato e, consequentemente, ao combate à corrupção no Brasil.
>> Delações premiadas já ajudaram a recuperar R$ 14 bilhões em todo o país
O nascedouro da disputa desta semana é a lei que versa sobre organizações criminosas, de 2013, que concede à Polícia Federal o poder de celebrar acordos de delação. Esse ponto só se tornou uma questão de grande envergadura devido à expansão da Operação Lava Jato, quando as delações se converteram no principal mecanismo de investigação, o diferencial que levou ao sucesso da investigação e à demolição do sistema de corrupção implantado no poder. Com esse poder exclusivo nas mãos, eles assumiram um protagonismo inédito e a hegemonia nas investigações mais importantes da operação, alijando os delegados. Desde o início da Lava Jato, os procuradores de Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro já celebraram 293 acordos de delação. Os policiais, é óbvio, se ressentem de ficar a reboque dos procuradores. Essa posição só agravou uma rixa histórica, agressiva, entre duas grandes corporações em busca de poder e status, com implicações institucionais.
A Polícia Federal tentou exercer o poder das delações, mas foi barrada pelo Ministério Público. No ano passado, o publicitário Duda Mendonça, réu no mensalão, antecessor de João Santana na antes prestigiada posição de “marqueteiro do PT que recebe via caixa dois”, se ofereceu à força-tarefa da Lava Jato na Procuradoria-Geral da República para um acordo de delação. Confessou que recebeu da Odebrecht, por meio de caixa dois, parte dos pagamentos de trabalhos realizados na campanha de Paulo Skaf (PMDB), ao governo de São Paulo, em 2014. Depois de muita negociação, os procuradores foram deixando Duda de lado. Consideravam que se tratava mais de uma confissão que de uma delação: Duda buscava admitir o que fizera de errado, sem entregar outros implicados, sem ajudar a esclarecer outros casos – o oposto de uma delação. É uma malandragem comum, na qual o suspeito quer o melhor dos mundos com perdão para se livrar das punições, sem precisar entregar outros criminosos.
>> Gilson Dipp: “A delação premiada é um instituto fundamental”
Mas Duda não desistiu. No meio das conversas, seus advogados procuraram também a Polícia Federal, que abriu negociações e, no final, considerou que o que ele dizia tinha valor para suas investigações. A PF fechou o acordo com Duda em abril e encaminhou a delação ao Supremo. Em setembro, pouco antes de deixar o cargo, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi instado pelo ministro Edson Fachin e deu parecer contrário à delação. Falta o Supremo dar sua palavra definitiva.
O Supremo já debateu aspectos das delações neste ano. Examinou o mais delicado dos casos, o acordo com executivos do grupo J&F, só comparável ao da Odebrecht em termos de consistência de provas e relevância dos investigados. Havia a tentativa de anular os efeitos do que disseram Joesley Batista e seus colegas; suas declarações e provas implicaram até mesmo o presidente da República, Michel Temer, além de quase 2 mil políticos. Questionava-se se Janot havia sido benevolente demais com a turma da JBS, ao conceder-lhes imunidade. Prevaleceu, na ocasião, o entendimento do ministro Edson Fachin, segundo o qual a Procuradoria tem autonomia para fazer o acordo e definir suas cláusulas, cabendo ao juiz, no primeiro momento, apenas avaliar a legalidade das condições estabelecidas. Só depois, ao chegar à sentença, é que o juiz vai analisar a eficácia de uma delação, se o réu realmente colaborou, e decidir se as penas acertadas anteriormente correspondem aos resultados obtidos.
Foi um julgamento difícil, áspero,
devido especialmente ao antagonismo surgido entre Janot e o ministro
Gilmar Mendes. Coube ao ministro decano Celso de Mello apontar um ponto
decisivo. Celso de Mello defendeu que uma delação homologada pelo
Judiciário deve ter suas condições respeitadas e não pode ser
rescindida, a não ser que o colaborador não cumpra o prometido. Se os
investigadores não conseguirem provar o que foi dito, a culpa não pode
cair sobre o delator. O ministro Gilmar Mendes fez o papel inverso.
Disse que as cláusulas utilizadas nos acordos eram ilegais e que a
Procuradoria não poderia ter concedido perdão judicial a Joesley
Batista, pois isso impediria a Justiça de analisar a efetividade da
colaboração. “Vamos estar a reescrever a Constituição, com todos aqueles
valores que considerávamos, até ontem, cláusula pétrea, mas que agora
podem ser dissolvidos por um acordo em Curitiba”, afirmou.
O debate foi divergente e tão tenso que até hoje alguns ministros não entregaram seus votos por escrito, o que impossibilitou a confecção do acórdão, o documento formal que detalha o entendimento da Corte num julgamento. Um dos divergentes foi o ministro Ricardo Lewandowski, que no mês passado devolveu à Procuradoria a colaboração premiada do marqueteiro Renato Pereira, que atinge em cheio o PMDB do Rio. Lewandowski afirmou que eram ilegais diversas cláusulas que têm sido adotadas desde o início da Lava Jato e autorizadas pelos seus colegas de STF em diversas outras delações. Assim, Lewandowski colocou em xeque toda a estabilidade da operação.
Muito
além de depoimentos dos delatores, sob a montanha de provas que começam
a se avolumar, constata-se que as delações premiadas celebradas
forneceram elementos e pistas para fazer andar as investigações. A
partir de uma delação premiada, a da Odebrecht, os investigadores estão
conseguindo provas para corroborar diversas acusações. O mesmo acontece
no caso da JBS. Há duas semanas, a Polícia Federal fez uma operação que
terminou na prisão de um auditor da Receita Federal citado na delação da
JBS. Por 12 anos, ele recebeu cerca de R$ 160 milhões em propina para
ajudar a JBS a obter R$ 2 bilhões em créditos tributários. O fiscal
tinha uma Ferrari.
Em outro caso também derivado da JBS, investigadores descobriram achaques do ex-governador do Rio Anthony Garotinho para que empresas lhe fizessem doações de campanha, informação corroborada por outro empresário. Garotinho está preso em Bangu 8, isolado, depois que disse ter sido agredido na cadeia de Benfica, onde estão seu sucessor, Sérgio Cabral, e outros ex-poderosos. O presidente do PR, ex-senador Antonio Carlos Rodrigues, também caiu. Está preso, acusado de receber propina de R$ 3 milhões da empresa para a campanha de Garotinho.
Investigações fortalecem provas, permitem concretizar casos contados por delatores. Servem também para desanuviar ambientes turvos. Nesta semana, a Polícia Federal concluiu inquérito sobre o áudio que fez desmoronar a delação da JBS e colocou Joesley Batista e os seus na prisão. Trata-se daquela “conversa de bêbado” – segundo Joesley –, na qual, além de obscenidades, ele e auxiliares falavam em gravar ministros do Supremo para comprovar irregularidades. Na ocasião, o então procurador-geral, Rodrigo Janot, considerou a conversa grave e suspendeu o acordo. A Polícia Federal examinou tudo e não achou nenhum indício de crime. Há pelo menos uma sombra a menos sobre uma delação.
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A não decisão do Supremo, no entanto, mantém um véu de insegurança jurídica sobre as delações premiadas. Convertidas no mais poderoso instrumento de investigação, responsáveis pelo sucesso da Lava Jato na demolição do mais efetivo conluio de corrupção entre empresários e políticos encastelados no alto do poder no país, as delações se tornaram fundamentais para conseguir quebrar a barreira eterna da impunidade no Brasil. Sua fragilidade, portanto, vai além da questão jurídica, das discussões entre investigadores e dos conflitos de ideias entre juristas. Deixar as delações em suspenso é uma ameaça à Lava Jato e, consequentemente, ao combate à corrupção no Brasil.
>> Delações premiadas já ajudaram a recuperar R$ 14 bilhões em todo o país
O nascedouro da disputa desta semana é a lei que versa sobre organizações criminosas, de 2013, que concede à Polícia Federal o poder de celebrar acordos de delação. Esse ponto só se tornou uma questão de grande envergadura devido à expansão da Operação Lava Jato, quando as delações se converteram no principal mecanismo de investigação, o diferencial que levou ao sucesso da investigação e à demolição do sistema de corrupção implantado no poder. Com esse poder exclusivo nas mãos, eles assumiram um protagonismo inédito e a hegemonia nas investigações mais importantes da operação, alijando os delegados. Desde o início da Lava Jato, os procuradores de Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro já celebraram 293 acordos de delação. Os policiais, é óbvio, se ressentem de ficar a reboque dos procuradores. Essa posição só agravou uma rixa histórica, agressiva, entre duas grandes corporações em busca de poder e status, com implicações institucionais.
A Polícia Federal tentou exercer o poder das delações, mas foi barrada pelo Ministério Público. No ano passado, o publicitário Duda Mendonça, réu no mensalão, antecessor de João Santana na antes prestigiada posição de “marqueteiro do PT que recebe via caixa dois”, se ofereceu à força-tarefa da Lava Jato na Procuradoria-Geral da República para um acordo de delação. Confessou que recebeu da Odebrecht, por meio de caixa dois, parte dos pagamentos de trabalhos realizados na campanha de Paulo Skaf (PMDB), ao governo de São Paulo, em 2014. Depois de muita negociação, os procuradores foram deixando Duda de lado. Consideravam que se tratava mais de uma confissão que de uma delação: Duda buscava admitir o que fizera de errado, sem entregar outros implicados, sem ajudar a esclarecer outros casos – o oposto de uma delação. É uma malandragem comum, na qual o suspeito quer o melhor dos mundos com perdão para se livrar das punições, sem precisar entregar outros criminosos.
>> Gilson Dipp: “A delação premiada é um instituto fundamental”
Mas Duda não desistiu. No meio das conversas, seus advogados procuraram também a Polícia Federal, que abriu negociações e, no final, considerou que o que ele dizia tinha valor para suas investigações. A PF fechou o acordo com Duda em abril e encaminhou a delação ao Supremo. Em setembro, pouco antes de deixar o cargo, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi instado pelo ministro Edson Fachin e deu parecer contrário à delação. Falta o Supremo dar sua palavra definitiva.
O Supremo já debateu aspectos das delações neste ano. Examinou o mais delicado dos casos, o acordo com executivos do grupo J&F, só comparável ao da Odebrecht em termos de consistência de provas e relevância dos investigados. Havia a tentativa de anular os efeitos do que disseram Joesley Batista e seus colegas; suas declarações e provas implicaram até mesmo o presidente da República, Michel Temer, além de quase 2 mil políticos. Questionava-se se Janot havia sido benevolente demais com a turma da JBS, ao conceder-lhes imunidade. Prevaleceu, na ocasião, o entendimento do ministro Edson Fachin, segundo o qual a Procuradoria tem autonomia para fazer o acordo e definir suas cláusulas, cabendo ao juiz, no primeiro momento, apenas avaliar a legalidade das condições estabelecidas. Só depois, ao chegar à sentença, é que o juiz vai analisar a eficácia de uma delação, se o réu realmente colaborou, e decidir se as penas acertadas anteriormente correspondem aos resultados obtidos.
O debate foi divergente e tão tenso que até hoje alguns ministros não entregaram seus votos por escrito, o que impossibilitou a confecção do acórdão, o documento formal que detalha o entendimento da Corte num julgamento. Um dos divergentes foi o ministro Ricardo Lewandowski, que no mês passado devolveu à Procuradoria a colaboração premiada do marqueteiro Renato Pereira, que atinge em cheio o PMDB do Rio. Lewandowski afirmou que eram ilegais diversas cláusulas que têm sido adotadas desde o início da Lava Jato e autorizadas pelos seus colegas de STF em diversas outras delações. Assim, Lewandowski colocou em xeque toda a estabilidade da operação.
Em outro caso também derivado da JBS, investigadores descobriram achaques do ex-governador do Rio Anthony Garotinho para que empresas lhe fizessem doações de campanha, informação corroborada por outro empresário. Garotinho está preso em Bangu 8, isolado, depois que disse ter sido agredido na cadeia de Benfica, onde estão seu sucessor, Sérgio Cabral, e outros ex-poderosos. O presidente do PR, ex-senador Antonio Carlos Rodrigues, também caiu. Está preso, acusado de receber propina de R$ 3 milhões da empresa para a campanha de Garotinho.
Investigações fortalecem provas, permitem concretizar casos contados por delatores. Servem também para desanuviar ambientes turvos. Nesta semana, a Polícia Federal concluiu inquérito sobre o áudio que fez desmoronar a delação da JBS e colocou Joesley Batista e os seus na prisão. Trata-se daquela “conversa de bêbado” – segundo Joesley –, na qual, além de obscenidades, ele e auxiliares falavam em gravar ministros do Supremo para comprovar irregularidades. Na ocasião, o então procurador-geral, Rodrigo Janot, considerou a conversa grave e suspendeu o acordo. A Polícia Federal examinou tudo e não achou nenhum indício de crime. Há pelo menos uma sombra a menos sobre uma delação.
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