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Força-tarefa rastreia 300 mil empresas criadas para fraudar impostos

Elas funcionam no papel, mas só servem para acumular dívidas bilionárias com o governo e transferir dinheiro para laranjas

O deputado João Gualberto.Ele tem empresa zumbi e votou a favor de projeto que facilita negociação de dívidas (Foto:  Alexssandro Loyola/Agência Câmara)
As ervas daninhas subindo pelas paredes, a estrutura sem reboco e os fios elétricos à mostra adornam um imóvel abandonado na Vila São José, Zona Sul de São Paulo. Nos registros formais, ali funciona a Foundryman Comércio e Indústria de Aço. Mas o que eram portas e janelas são hoje buracos fechados com tijolos e cimento. Os vizinhos contam que o local abrigava um escritório e fechou as portas há cerca de dois anos. Resta apenas a placa “Vende-se”. Só mais uma construção abandonada – não fosse a Foundryman dona de uma dívida de R$ 4,8 milhões com o Fisco. De acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão encarregado de administrar e cobrar débitos com o governo federal, a Foundryman é representante de uma espécie chamada empresa zumbi. Só neste ano cerca de 300 mil zumbis foram mapeadas.
As empresas zumbis são, tais quais as homônimas da ficção, mortas-vivas. Também como as franquias da TV e do cinema, são lucrativas. São mantidas ativas para desviar dinheiro devido ao Fisco e encher os bolsos de corruptos. A maioria delas, descobertas pelos procuradores, são negócios de pequeno e médio porte, com dívidas de firmas grandes. Algumas já nasceram zumbis, somente para servir de fachada para outros negócios. Outras funcionaram sem pagar impostos, acumularam dívidas e, quando o montante ficou impagável, foram abandonadas.
Empresas zumbis não geram renda, empregos ou pagam tributos. Só existem no papel. Combatê-las é difícil. Enquanto o Fisco corre atrás de uma zumbi para cobrar dívidas, uma clone é criada e continua a fazer negócios. O passivo tributário fica para a zumbi. Segundo a Procuradoria, na maior parte dos casos o negócio funciona apenas durante período suficiente para seus donos transferirem o patrimônio para terceiros ou laranjas. Quando os auditores localizam os proprietários, não conseguem executar a dívida porque eles tiveram tempo de se desfazer de seus bens. Os fiscais batem no endereço e não há mais proprietário, funcionários ou bens suficientes para saldar a dívida. Encontram apenas um “esqueleto”, como o prédio da Vila São José.
Nos últimos meses, a Procuradoria da Fazenda desenvolveu estratégias para rastrear as zumbis, por meio de técnicas de cruzamento de informações, antes que os donos se desfaçam do patrimônio. Um poderoso banco de dados está sendo usado para interceptar movimentações patrimoniais atípicas e bloqueá-las antes que os empresários enrolados esvaziem as empresas.
ÉPOCA teve acesso a documentos e relatórios da investigação tocada pelos procuradores da Fazenda Nacional. As operações contam com o apoio até dos serviços de inteligência das Forças Armadas. Robôs virtuais e computadores capazes de processar mais de 1.000 CNPJs por minuto permitiram à força-tarefa fazer o rastreamento de patrimônios e executar dívidas que antes eram dadas como perdidas. Apenas no bairro do Morumbi, em São Paulo, foram identificados dez proprietários de empresas zumbis, com dívida somada superior a R$ 1 bilhão.
Em uma mesma sala comercial no bairro Jardim Armação, em Salvador, os procuradores mapearam três empresas do deputado João Gualberto Vasconcelos, do PSDB da Bahia. São negócios variados, de fabricação de produtos de limpeza, administração de imóveis e comércio atacadista. Uma delas, a Galileo, deve R$ 4,3 milhões ao Fisco e também está na mira da operação de caça aos zumbis. João Gualberto admite que a Galileo não tem funcionários,  que seus ativos foram vendidos e que a empresa, apesar de ativa na Receita, “não opera nada”. “Ela só administra o contencioso”, diz. O deputado atribui a investigação à sua empresa a uma “questão política”. Ele diz que a Galileo atuou por muitos anos no ramo de supermercados e, em 1999, a operação de suas lojas foi vendida para o grupo Walmart. “Aqui na Casa (Câmara dos Deputados) tem muito deputado corrupto, enrolado. Não é o meu caso. Minha empresa é idônea. Todo empresário adora ser governo. Como não tenho rabo preso e voto contra, a gente sofre essas consequências”, diz.
ZUMBI Endereço da Foundryman em São Paulo.Nem sinal da empresa que deve milhões ao governo (Foto:  Reprodução)
João Gualberto diz que sua empresa não pode ser considerada “fantasma”, nem devedora, muito menos zumbi, porque aderiu ao novo programa de parcelamento de dívidas oferecido pelo governo federal, o Refis. Resultado da pressão de deputados vorazes e da benevolência do governo em busca de apoio à reforma da Previdência, o texto do novo Refis foi aprovado. Em votação simbólica, sem que o nome de cada parlamentar aparecesse no painel. Contudo, ao votar as emendas no dia 3 de outubro, os parlamentares tiveram de se identificar, graças a uma proposta do PSOL que proibia a adesão ao Refis por parte de políticos e detentores de cargos públicos. João Gualberto pode até votar contra o governo, mas não vota contra seus negócios. Ele e outros 204 deputados foram contra a emenda, possibilitando, assim, que políticos devedores também pudessem se beneficiar do programa que eles mesmos estavam aprovando. João Gualberto legislou a favor de si próprio e de sua zumbi.
Nos próximos meses, todas as empresas identificadas como zumbis serão notificadas por carta para que possam apresentar contestação no prazo de 15 dias. Se a resposta não for satisfatória, a notificação será realizada por Diário Oficial. A força-tarefa de procuradores federais começou a atuar no início de 2016. Teve de desacelerar as investigações por causa do Programa Especial de Regularização Tributária (Pert). É como se os procuradores tivessem dado  uma chance para as zumbis acertarem as contas com o Fisco.
Deputados votaram para que políticos também possam negociar suas dívidas pelo programa Refis
Há um segundo padrão de devedor incluído na força-tarefa da Procuradoria, o do “patrimônio oculto”. São empresas que acumulam patrimônios milionários à custa da sonegação de impostos; depois transferem esses bens para laranjas, o que impede o Fisco de receber a dívida. Só em 2017 os procuradores da força-tarefa conseguiram localizar cerca de R$ 10 bilhões transferidos para laranjas ou aplicados em aviões, iates, obras de arte, imóveis e bens no exterior.
Nessa operação, detectou-se a Expresso Riacho Grande, empresa de transporte de passageiros com sedes em Goiás e Brasília. Logo, a União entrou com uma Ação Cautelar Fiscal, na qual pediu o bloqueio de R$ 140 milhões de bens do grupo pelo sistema que interliga a Justiça, o Banco Central e os bancos. A dívida da empresa soma R$ 148 milhões. Em decisão que permanece em segredo de Justiça, o juiz federal Alexandre Machado Vasconcelos considerou que a Riacho Grande transferiu bens para laranjas e fez “manobras fraudulentas” para blindar o patrimônio do grupo econômico e fugir das execuções fiscais realizadas pela Justiça Federal do Distrito Federal e de Goiás. Segundo o juiz federal, a ação da PGFN “trouxe farto conjunto de provas” que demonstra a transferência de funcionários da Riacho Grande para outras empresas do grupo, alteração do domicílio tributário e substituição dos sócios por laranjas e o “esvaziamento” do patrimônio da empresa.
RASTRO Trecho de relatório da Procuradoria da Fazenda. Uma empresa deve R$ 232 milhões  (Foto: reprodução)
Em situação parecida, a Indústria Cataguases de Papel, que deve R$ 232 milhões, também foi enquadrada como empresa “ocultadora”. Sediada em Cataguases, Minas Gerais, a indústria também vinha recorrendo “a manobras fraudulentas para blindar o patrimônio e evitar a recuperação de crédito público”, diz a ação da Procuradoria, que conseguiu o bloqueio dos bens de diversas pessoas físicas e jurídicas ligadas ao grupo. Os auditores verificaram que o grupo usava práticas contábeis irregulares para aumentar o lucro. Também abria novas empresas em nome de laranjas para “confundir” a Receita.
O advogado Helio Cezar Afonso Rodrigues, que representou a Expresso Riacho Grande, diz que seu cliente “desapareceu” em 2013, depois que o governo do Distrito Federal cancelou suas concessões. “Meu cliente ficou sem receita, a empresa parou de operar, parou de pagar impostos, empregados e advogados. Teve enxurrada de ações trabalhistas”, afirma. “Ele ficou constrangido e deve ter voltado para sua terra natal. Perdi o contato dele, não sei onde se encontra.” ÉPOCA também tentou contato com a Cataguases, por e-mail e dezenas de telefones vinculados à empresa, mas não obteve retorno. Dois advogados que representaram a empresa em ações relativas a dívidas com a Receita não responderam. Zumbis são mesmo difíceis de encontrar por aí.

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