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João Carlos Martins: ‘Silvio Santos vai manchar sua biografia’

Maestro, um dos maiores pianistas que o Brasil já teve, fala da atuação política, do escândalo com Maluf, do momento atual do país e da vida ‘inverossímil’


Um dia, ao abrir o jornal para ler as notícias, o químico sueco Alfred Nobel se deparou com o próprio obituário. Não se trata de um conto de Borges: o jornal, um periódico da França, país onde um dos seus irmãos se encontrava, soube do desfecho de um integrante do clã Nobel e, acreditando se tratar do inventor da dinamite, cravou, “O mercador da morte está morto”. Além de enfrentar o luto por Ludwig, Alfred teve de encarar a imagem que a sociedade fazia dele. Afinal, era o criador do explosivo que mandava objetos e pessoas pelos ares, e enriquecia com isso. Golpeado pelo texto, o sueco tomou uma decisão: deixaria um legado positivo para a humanidade. Foi assim que destinou, no seu testamento, toda a fortuna feita com a dinamite para a criação do prêmio que levaria o nome da família para a posteridade, e cuja categoria principal, até hoje, é a da Paz.
Para o pianista e maestro João Carlos Martins, é o oposto disso o que o empresário e apresentador Silvio Santos tem feito em seu avanço sobre os terrenos que contornam o Teatro Oficina, no Bexiga, bairro da região central de São Paulo. Secretário da Cultura do governo de André Franco Montoro, político paulista que seria um dos criadores do PSDB, foi Martins quem tombou em 1983 o prédio onde a companhia teatral fez a sua sede, vinte e dois anos antes. À época, Silvio Santos investia na terra em volta do teatro e pretendia comprar também o lote ocupado pelo grupo de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que então alugava o imóvel. O plano do empresário, que nunca desistiu dele por completo, era erguer um grande empreendimento no lugar do prédio reformado pela ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou o Sesc Pompeia e o Masp.
“Esse projeto é um crime. Aquele lugar deveria ser uma praça pública, para o cidadão. Se insistir nesse plano, Silvio Santos vai manchar a biografia”, diz Martins. “Como comunicador, ele é uma Hebe Camargo. Deveria preservar essa aura.”
O maestro João Carlos Martins após reger a Orquestra Filarmônica Bachiana do Sesi SP, em
O maestro João Carlos Martins após reger a Orquestra Filarmônica Bachiana do Sesi SP, em (Ana Ottoni/Bravo/Dedoc)
Pianista de carreira brilhante, ovacionado em grandes casas de concerto como a nova-iorquina Carnegie Hall — aliás construída por um magnata da siderurgia que queria reabilitar a imagem como fez Alfred Nobel –, João Carlos Martins chegou à política depois de sofrer uma série de revezes físicos que implodiram uma brilhante carreira internacional, pela qual desembarcou em mais de setenta países, em alguns dos maiores palcos do mundo. Foi secretário da Cultura por apenas dez meses. Nesse curto período, porém, teve uma gestão notável na defesa do patrimônio público. Além do Oficina, tombou a Pinacoteca do Estado, na Luz, o Teatro Brasileiro da Comédia (TBC), a Serra do Japi e parte da Serra do Mar com Mata Atlântica nativa.
Não foram decisões ideológicas, no sentido de abrigadas dentro de uma lógica de direita ou de esquerda. O espectro político ocupado por Martins é distinto daquele em que se encontra Zé Celso – a ligação com Paulo Maluf, da qual se arrepende até hoje, é prova disso. O músico, ele próprio diz, apenas reconheceu o valor artístico e arquitetônico dos endereços que fizeram do Bexiga o berço do teatro moderno brasileiro. “Considero o Zé Celso, como eu considerava o Antônio Abujamra, um desses gênios que apareceram no teatro brasileiro pela coragem de tomar atitudes em épocas em que ninguém tinha coragem de tomar atitude nenhuma.” Zé Celso, que de fato fez uma revolução cultural em plena ditadura civil-militar, é recíproco no elogio. “João Carlos Martins é um homem de nobreza”, afirma.
O tombamento do TBC, com Abujamra à frente, se deu em uma tarde em que Martins estudava ao piano no gabinete da Secretaria de Cultura do Estado e o ator e diretor, já falecido, apareceu eletrizado, sem ter marcado horário, e entrou na sala sem dar tempo de ser anunciado. “Tenho certeza de que posso entrar. Mesmo que o secretário esteja estudando, ele vai me ouvir”, disse Abu, com sua voz grave, à recepcionista, antes de abrir a porta e se sentar ao lado do piano. “Enquanto eu tocava, ele explicou que o lendário TBC seria destruído se não fosse tombado. Passei a tocar só com a esquerda para, no mesmo momento, assinar com a direita o projeto de tombamento”, lembra Martins.
O tombamento do Teatro Oficina se deu com a mesma determinação. “Eu comprei briga com o Silvio Santos, que era o rei da cocada. Mandei avisar que iria tombar o Oficina e adiar o plano dele por décadas, e consegui”, ri Martins, orgulhoso.
Silvio Santos tem sido procurado pela reportagem há semanas para comentar seus planos para o Bexiga, mas se recusa a falar.

Errei, errei, não nego

No mesmo dia em que recebeu Abujamra, sinal dos tempos, militares o procuraram pedindo que abortasse um evento pelo Dia da Mulher que seria encabeçado pela também falecida Ruth Escobar. “Recusei educadamente. Falei que a única coisa que eu havia cancelado na vida foram os concertos que não pude dar.” Mas dizer não a militar era algo arriscado, e o pianista precisou acionar uma rede de contatos para não ter problemas.
Apesar do clima de chumbo da ditadura, João Carlos Martins considera o momento atual mais duro do que aquele. “Hoje é pior do que na época do militarismo. Hoje, o politicamente correto ganhou uma força tão grande, mas tão grande… As obras da Renascença tinham nudez e falavam do divino”, diz, fazendo referência implícita ao episódio em que conservadores atacaram a performance Lâ Bete, aquela em que o coreógrafo fluminense Wagner Schwartz fica nu para emular um Bicho de Lygia Clark, e pela qual foi tocado por uma criança em uma sessão no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). “A partir do momento em que tem discernimento, a pessoa deve ser exposta a todo tipo de arte. Isso enriquece. Uma criança educada em um ambiente em que a cultura esteja presente já cresce com outro repertório, que a afasta de coisas nocivas”, diz. “É por isso que existe a palavra tutor. Um pai, mãe ou responsável que saiba encaminhar.”
O senador Eduardo Suplicy e o maestro João Carlos Martins desfilam pela Vai-Vai, que o homenageou no Carnaval de 2011
O senador Eduardo Suplicy e o maestro João Carlos Martins desfilam pela Vai-Vai, que o homenageou no Carnaval de 2011 (Cida Souza/Tititi/Dedoc)
Problema mesmo o pianista teria com uma cria dos chamados milicos, o ex-governador biônico Paulo Maluf. No início dos anos 1990, o maestro, se aventurando mais uma vez como empresário depois de agenciar o boxeador Éder Jofre nos anos 1970, foi acusado de arrecadar dinheiro ilegalmente para campanhas de Maluf, de quem tencionava ser secretário da Cultura, ao governo e à Prefeitura de São Paulo, no caso batizado de Paubrasil. Foi inocentado. Apesar da absolvição e da distância do episódio, diz ainda ter arrepios com a história. “Hoje, 27 anos depois, acordo de noite com a mão suando, pensando no erro de ter me afastado da música naqueles anos”, conta.
“Eu errei. Errei, não nego que errei. Errei em participar daquela campanha com aquela pessoa que eu nunca mais vi na vida e que eu não permiti que entrasse no meu filme”, diz, citando João, o Maestro, longa de Mauro Lima (Meu Nome Não É Johnny e Tim Maia) que estreou neste ano nos cinemas. O filme agora está disponível na plataforma de streaming Now e a caminho do canal pago Canal Brasil. “Mas provei que eu não fiquei com nenhum tostão.”
A comprovação da inocência não mudaria, no entanto, o “estrago” provocado pela denúncia de envolvimento em um esquema de corrupção. Em vez de se abater, o pianista preferiu seguir o modelo de Alfred Nobel e Andrew Carnegie e combater o dano à imagem construindo um legado positivo para o país. Assim surgiram os projetos sociais que toca hoje, A Música Venceu, voltado a jovens carentes, o coral Somos Iguais, com refugiados da Síria, do Congo e de Angola, e o Orquestrando, de, digamos, empoderamento de maestros e orquestras em cidades de até 70.000 habitantes. Ele também realiza concertos para arrecadar fundos para o Graac (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer) e comanda a Orquestra Bachiana, a maior da iniciativa privada da América Latina, mantida pelo Sesi (Serviço Social da Indústria). “Quero, ao formar jovens na música, ter a mesma qualidade do El Sistema da Venezuela, mas sem uso político”, diz o maestro, que agora procura manter distância da política.
Dia 23 de dezembro, no espírito do Natal, João Carlos Martins vai reger, a partir da cidade de São Paulo e com apoio da internet, as primeiras vinte orquestras contempladas pelo Orquestrando, a grande parte no interior paulista – uma única cidade fora de São Paulo nesta primeira fase do projeto é Extrema, em Minas Gerais. No programa, Jesus Alegria dos Homens, de Bach, compositor preferido do músico. O plano depois é expandir o programa para outras regiões do país.
“O Orquestrando conta com um curso a distância para dar respaldo a maestros de cidades pequenas. Cada cidade vai fazer quatro concertos por ano, ensaiando cada repertório por três meses. Nos Estados Unidos, a figura de um maestro é quase tão importante quanto a do prefeito”, afirma. “Quando eu reger as primeiras vinte cidades no Natal, como Socorro, Atibaia, Sertãozinho e Ribeirão Pires, acredito que possa ajudar as orquestras a conseguirem patrocínio no próprio município, de uma padaria local, por exemplo”, diz Martins, um entusiasta declarado das leis de incentivo.
O plano é apoiar e ampliar o acesso às artes, aqui representadas pela música erudita. E deixar essa herança. “Eu ganhei por nove a zero no Supremo Tribunal Federal, mas isso saiu num rodapé de jornal, e o estrago à minha imagem já havia sido feito”, lembra. “Eu disse então para o meu pai que trabalharia todos os dias da minha vida para deixar algo bom para o país com a música. Já errei ao decidir ser empresário de boxe e ao participar de uma campanha política. Agora, estou empenhado em acertar.”
Martins, que também já atuou na Fundação Casa, a antiga Febem, com palestras e shows, defende o direito ao recomeço. “Eu não conheço uma pessoa que não tenha tido seus erros. Também não conheço ninguém que não tenha tido os seus acertos. O importante é a dimensão dos erros e a dimensão dos acertos.”

O pai, a inspiração

A menção ao pai, citado no imbróglio com Paulo Maluf, é recorrente. Ele aparece inúmeras vezes durante a entrevista e assume um papel importante na cinebiografia João, o Maestro. No filme, a professora de piano do menino João fala com o pai, José, sobre as razões que levaram o garoto a estudar música, e ele responde que não conseguiu tocar quando criança. “Mas estamos falando dele ou de você?”, questiona a professora.
De fato, está tudo misturado. Como João Carlos Martins mesmo diz, sua carreira começou com o pai. Ainda em Portugal, onde nasceu, José Eduardo Martins queria ser pianista, mas um acidente na gráfica onde trabalhava ainda menino decepou um dos seus dedos – e o sonho.
Em 1998, quando tomou a decisão que sepultaria de vez sua proeminente carreira ao piano, a de se submeter à cirurgia que cortaria um nervo e o levaria a perder os movimentos da mão direita, prejudicada por uma lesão cerebral decorrente da pancada sofrida em um assalto na Bulgária em 1995, foi no pai que João Carlos Martins pensou.
Na introdução da biografia A Saga das Mãos, hoje fora de catálogo, o próprio maestro descreve a sua despedida e a relação com o pai.

“Londres, 25 de junho de 1998

Sozinho no camarim, aguardo o momento de subir ao palco para tocar ao lado da Royal Philharmonica Orchestra. O burburinho da plateia chega até mim como se fosse o bramido de um mar distante. Nesse dia, completo 58 anos. E mais de meio século já se passou desde que dedilhei pela primeira vez o teclado de um piano. Mas não é isso o que torna a data tão especial. Três horas antes, eu havia conversado por telefone com meus médicos em Miami e confirmei a operação que iria seccionar o nervo da minha mão direita, acabando para sempre com minha carreira de pianista.
A multidão que se aglomera na plateia não sabe de nada. Nem os outros músicos nem a imprensa. Somente eu e meus médicos sabemos que aquele é meu concerto de adeus. Fiz questão de não criar nenhum drama público. Nas próximas horas, a dor que eu levaria para o palco seria a minha e de mais ninguém. Apagam-se as luzes e o chefe de palco me chama para entrar. Enfrento a plateia como um velho leão que oculta suas cicatrizes. Contudo, se uma câmera se aproximasse de meu rosto, captaria as lágrimas correndo discretas e inexoráveis. É um momento de indescritível solidão. Entre as mil e tantas pessoas presentes no teatro, sou o único a saber que tudo vai acabar naquela noite.
A sensação é fugaz, etérea, mas, por uma fração de segundo, sinto uma presença ao meu lado. Trata-se de um menino, um menino que só eu vejo, José é seu nome. José não leu os jornais do dia, não viu os elogios que a crítica inglesa teceu ao pianista que está se apresentando naquela noite. Não sabe que ele consolidou uma carreira musical Interpretando Bach com toda sua alma e paixão. Quando andava pelas ruas da cidade portuguesa de Braga, em fins do século XIX, correndo de um emprego para o outro, o menino José ainda não sabia de nada disso. Mas é graças a ele que estou aqui. Nos anos seguintes, o menino tornou-se homem e o homem tornou-se meu pai. Seu amor à música é o ponto de partida da minha história.”

Sangue nas teclas

A lesão cerebral foi apenas mais um capítulo adverso em uma trajetória marcada por acidentes e obstáculos. Aos 77 anos, João Carlos Martins já enfrentou 23 cirurgias, duas delas ainda na infância, quando um tumor aflorou no pescoço do menino e o converteu em alvo de bullying dos colegas da escola. Matricular o filho nas aulas de piano era também, para José, uma forma de compensá-lo pelo mal-estar provocado pela doença.
“Meu pai me comprou um piano. Eu estudava com uma menina, uma amiga que me protegia. Ela morreu junto com a mãe, que, ao se separar do marido, decidiu se matar com gás e acabou matando também a filha”, conta Martins, citando uma cena presente na cinebiografia. Duas semanas depois de ganhar o piano de presente, o garoto já tocava “um concertinho”. “Eu não me lembro de estudar piano, me lembro de tocar piano.”
João Carlos Martins, ainda criança, fotografia do livro “João Carlos Martins”
João Carlos Martins, ainda criança, fotografia do livro “João Carlos Martins” (Reprodução/Arquivo pessoal)
Aos 13 anos, tinha uma carreira nacional, carreira que o apresentaria a Heitor Villa-Lobos, e, aos 18, se lançava no exterior, com apresentações ovacionadas pelo mundo e resenhas elogiosas na grande imprensa. Para estimular o garoto, o pai chegou a comprar na farmácia sulfato de benzedrina – no filme, lê-se “anfetamina” no rótulo de um frasco – por dois anos, até perceber que a substância fazia mal ao filho. Que apesar disso continuava a toda, ganhando prêmios, críticos e aplausos. “Parecia a vida dos sonhos. Até que veio o acidente no futebol.”
Com apenas 25 anos, em plena consagração internacional, João Carlos Martins sofreu um revés inacreditável. O pianista passava uma temporada em Nova York, onde encontrou, algo também incrível, a equipe da Portuguesa, seu time de coração, batendo bola no Central Park. Pediu para entrar no jogo e, numa queda, uma pedra entrou no braço direito e rompeu um nervo. “Foi daquele jeito mesmo como está no filme, mas a pedra entrou ainda mais fundo”, conta.
Obstinado – no longa, repete-se a palavra “obsessão” –, o pianista não desistiu. Para compensar os movimentos debilitados da mão, adotou dedeiras de aço que, nos concertos, machucavam os dedos até sangrar. “Se eu apertava muito, as dedeiras feriam. Mas, no palco, você dá tudo de si.”
O maestro e pianista João Carlos Martins, nos anos 80
O maestro e pianista João Carlos Martins, nos anos 80 (Sergio Sade/Dedoc)
Em um concerto em Berlim, enquanto os dedos sangravam sobre as teclas brancas, o apêndice supurava. Martins havia tido febre à tarde, mas não podia imaginar do que se tratava, e cumpriu o compromisso curvado diante do piano. Do concerto, foi direto para o hospital, onde, ao ter alta quatro dias depois, sofreu uma embolia pulmonar e passou dois meses em coma. “Sofri embolia quando ia entrar no táxi que foi me buscar. É tanta coisa que no filme, para resumir, o Mauro Lima me coloca saindo do palco com a camisa manchada, e depois enfrentando uma longa internação.”
No longa, também se vê o jovem João Carlos mergulhar a mão em baldes de gelo ao fim de cada apresentação. Era para aplacar a dor causada pelo esforço repetitivo. “Eu sofria de distonia, que depois veio a ser chamada de LER (lesão por esforço repetitivo). Para dar conta das apresentações, eu transformava o meu dia em noite. Chegava ao teatro umas quatro horas antes do concerto e dormia no camarim até meia-hora antes de pisar no palco. Assim, chegava ali como se tivesse acabado de acordar, com energia renovada. E levei minha carreira assim.”

João, abre a janela

Dificuldades, como se vê, não faltaram ao pianista, que ainda assim insistia na carreira. No filme, cansada de ser preterida e depois de flagrá-lo com manchas de batom, um clichê usado “dramaturgicamente” pelo diretor, a primeira mulher o deixa com os filhos a tiracolo. “Essa cena foi criada pelo Mauro Lima. O filme é 100% fiel à minha trajetória musical, já na parte pessoal entra a dramaturgia, uma forma de dar agilidade e de enfatizar a minha obstinação”, diz o pianista. “Na verdade, eu tive dois casamentos e dois relacionamentos antes da Carmen, com quem estou casado há mais de vinte anos. O Mauro transformou as quatro personagens em uma só, e enxugou minha prole. Também nunca fui de beber daquele jeito. Mas realmente fiquei mal depois do acidente e pensei em me matar.”
Ao achar que a carreira na música havia terminado, João Carlos Martins, sozinho em casa, se deitou na banheira com uma gilete ao lado. “Acabou tudo”, disse para si mesmo. Então, tocou o telefone. O músico, que ainda não havia aberto nenhum talho na pele, demorou, mas se decidiu a atender. Era o seu professor de piano, vivido no filme por Caco Ciocler, que o arrancou do plano de suicídio.
Apesar de ter desistido de se matar, João Carlos Martins não via mais futuro ao piano. Foi por essa época que se arriscou a empresário de boxe. Ao ver seu cliente, Éder Jofre, recuperar o título mundial aos 37 anos, o músico percebeu que também devia tentar de novo.
Comprou um teclado mudo para treinar em casa. Ele fazia tanto barulho nas madrugadas, como uma máquina de escrever, que os vizinhos se queixaram ao zelador do prédio, na alameda Lorena, nos Jardins. Irritado, João Carlos Martins se desfez do teclado. E comprou um piano. Se fosse para alguém reclamar, que ao menos tivesse razão. “Mas a reação foi outra. Os vizinhos me pediram que abrisse as janelas para ouvir a música.”
Ao retomar a confiança, o pianista ligou para o agente, Jay Roffman, e avisou: “The monster is back”. E disse que queria tocar no Carnegie Hall. “Ele me falou, ‘Mas já esqueceram de você. E são 2.800 lugares’.” O concerto foi um sucesso. João Carlos Martins foi aclamado de pé.
A sucessão de infortúnios não se encerraria aí, porém. Além do assalto que cerca de vinte anos depois resultaria em uma lesão cerebral e o empurraria para uma rara carreira baseada na mão esquerda (“La mano sinistra”, dizia o cartaz de um concerto na Itália), recebeu aos 64 anos o trágico diagnóstico de um tumor na mão que o sustentava. Foi então que se iniciou na regência. Hoje o maestro, que por superstição rege seus concertos de cueca azul, ainda se aventura ao piano, o “velho companheiro” de quem não abre mão. 

Pianista pop 

Em um país pouco afeito à música clássica, a carreira de João Carlos Martins, ainda que tenha alcançado ampla dimensão no exterior, é em grande medida desconhecida.
Martins se sagrou, em especial, por sua interpretação da obra do germânico Sebastian Bach (1685-1750). Quando se despediu do piano, a revista alemã Der Spiegel fez um artigo em que dizia “Obrigada pelo que você fez por Bach”.
Foi tocando Bach que Martins se tornou o primeiro pianista clássico do mundo a obter um disco de ouro por álbuns vendidos pelos correios. Nesse projeto, ele reviu a obra inteira do compositor que sempre o guiou.

O repertório surgiu para ele de forma natural. “Eu tinha um som diferente para Bach, então achei que era ali que eu teria espaço. O público de hoje quer conhecer a interpretação do pianista para uma determinada obra.” Bach veio e ficou. E nunca deixou de ser a sua grande referência musical. “O século XVII era o século da criatividade. Eu digo que Bach é a síntese e a profecia de tudo o que aconteceu na música. Ele é o único computador com alma, coisa que Bill Gates nunca vai conseguir fazer.”
Um dos que admiraram a sua leitura das músicas de Bach foi o pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989). Em um restaurante de Nova York, uma noite depois de um concerto, Dali se levantou e, apoiado em sua bengala, foi até a mesa do pianista para saudá-lo pelo trabalho – e para dar um conselho típico do mestre surrealista. “Você é um pianista maravilhoso, mas tenho que dar uma recomendação. Diga a todo mundo que você é o maior intérprete de Bach da história. Pode demorar uns quinze, vinte ou trinta anos, mas um dia vão acreditar em você. Eu digo que sou o maior pintor do mundo há muitos anos e já tem gente que acredita.”
Enquanto esteve em alta, João Carlos Martins colheu outros elogios de artistas, músicos e críticos. Keith Emerson, da banda de rock britânica Emerson Lake & Palmer, popular nos anos 1960 e 1970, disse ter se inspirado nele para tocar. O jazzista Dave Brubeck (1920-1992), do genial Take Five, escreveu uma carta ao cineasta Clint Eastwood, dizendo que ele deveria fazer um filme sobre a inverossímil vida do brasileiro. Eastwood teria mostrado interesse, mas o projeto acabou abraçado por Luiz Carlos Barreto, que o trouxe para o país.
O maestro João Carlos Martins em entrevista ao site de VEJA – 30/11/2017
O maestro João Carlos Martins em entrevista ao site de VEJA – 30/11/2017 (Ivan Pacheco/VEJA.com)

Todos o querem

O papel no governo Franco Montoro e a relevância musical levaram João Carlos Martins a receber uma visitinha de João Doria Jr. logo depois da surpreendente vitória do empresário no primeiro turno da disputa eleitoral pela Prefeitura de São Paulo. O maestro recebeu o empresário com seu estilo sincero, sem rodeios. “Ô, João, sei que você não está vindo aqui para me convidar para nada. Mas, se fosse, nem para faxineiro eu aceitaria”, disse na ocasião, em que aproveitou para dar dois conselhos a Doria, ambos acatados pelo prefeito.
“Recomendei o Roberto Minczuk para reger a Orquestra Municipal. Ele é o maior maestro brasileiro e estava sofrendo preconceito desde que quis fazer uma avaliação na OSB e os músicos se rebelaram”, conta, citando o controverso episódio da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 2011. “Também sugeri que ele fizesse a posse no Teatro Municipal, como ele de fato fez.”
Antes de Doria, representantes do PT o procuraram – mas para tocar em um aniversário do ex-presidente Lula. Segundo Martins, Lula o cumprimentou com seu estilo caloroso ao fim do concerto, e ele tratou logo de avisar que não era seu eleitor. “Ó, presidente, eu nunca votei no PT nem em você, mas quero agradecer por você ter voltado com a música nas escolas”, disse, no encontro.
Embora não seja parte do eleitorado de Lula, Martins não é só críticas ao ex-presidente. “Acho que o Fernando Henrique tem razão quando diz que os primeiros quatro anos do Lula foram maravilhosos e os quatro últimos, um desastre”, comenta a VEJA.
João Carlos Martins com sua Bachiana Filarmônica SESI-SP, em 2012
João Carlos Martins com sua Bachiana Filarmônica SESI-SP, em 2012 (Filarmônica Bachiana/Fernando Mucci/Divulgação)
De Dilma Rousseff, o maestro se aproximou ao ser convidado por ela para se apresentar em Brasília, no Dia Mundial do Meio Ambiente, em um evento que contou com o secretário-geral da ONU. “Fiz até uma composição.” A proximidade o impede de comentar o impeachment, embora enxergue um “certo descontrole” na economia na gestão Dilma. “Ficamos amigos.”
Em parte por isso, mas também por querer distância da política, não tomou parte das manifestações pela deposição da presidente, insufladas pelo Sesi, instituição que todo ano dá 3,6 milhões de reais, na forma de bolsas de estudo, aos músicos da Bachiana. “A atuação do Sesi no impeachment não tem nada a ver com a Bachiana. Eu em nenhum momento participei das manifestações. E já avisei ao Paul Skaf que, durante a campanha dele ao governo do Estado em 2018, a orquestra não fará concertos no interior.”
Com esse jeito franco e direto, João Carlos Martins trafega com habilidade entre diferentes grupos políticos e expressões artísticas. Mas tem os seus limites. Se fez um concerto para Lula, para o presidenciável Jair Bolsonaro, afirma, ele jamais tocaria.

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