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"O Brasil pode ser exemplo para o mundo"

Filósofo italiano examina a crise da sociedade atual, que ele chama de “desorientada” em seu novo livro, e aponta o país como um modelo a ser seguido para superá-la
Por Maria Carolina Maia
query_builder 20 abr 2017, 18h00


O mundo, já diria um filósofo jônico há 2.500 anos, está em constante transição. Nunca, porém, se viu tão sem norte como nos dias atuais, depois de perder as suas grandes ideologias, solapadas gradualmente ao longo do século XX, e não apenas ficar sem linhas de pensamento a discutir, mas também sem eixos que o sustentem. É essa a tese central de O Futuro Chegou e Alfabeto da Sociedade Desorientada - Para Entender o Nosso Tempo (tradução de Federico Carotti e Silvana Cobucci, Objetiva, 600 páginas, 69,90 reais), livro que o filósofo italiano Domenico De Masi acaba de lançar no Brasil, um de seus lugares preferidos no mundo. Não apenas porque vende muito por aqui – só com os livros publicados pela Sextante, caso do best-seller O Ócio Criativo, soma mais de 220.000 exemplares –, mas porque identifica no país qualidades únicas. Para Domenico De Masi, famoso por sua defesa do ócio tal como os antigos gregos o entendiam e praticavam, o Brasil é, depois da Grécia clássica, o palco onde essa “arte” mais floresceu. Fã do estilo de vida brasileiro, De Masi acredita que o país possa ser uma espécie de guia para o mundo, em sua busca por um modelo de sociedade que o tire daquilo que diagnostica como depressão global.
Na introdução de Alfabeto da Sociedade Desorientada, o senhor diz que o Brasil chama sua atenção porque passou do pessimismo à euforia e agora parece deprimido. A que atribui essas mudanças de humor? Eu acompanho a situação no Brasil pela imprensa e pelos livros, e também viajo com frequência ao país, onde encontro amigos. Há dez anos, eu saía de uma Itália deprimida e desembarcava em um país alegre. Hoje, os dois estão deprimidos, assim como os Estados Unidos e a China. No livro O Futuro Chegou, tentei encontrar a causa dessa depressão. Havia então uma crise do Ocidente, mas agora todo o planeta sente um desconforto crescente. E isso quando vivemos em um mundo em que há de tudo, empresas, exércitos, baús cheios de ouro, igrejas, organismos supranacionais, universidades, tecnologias capazes de nos fazer conectar com todos em tempo real. Há leis e tribunais, liberdade de expressão e movimento. Nunca tantos países adotaram um regime democrático e republicano. Nunca tantas crianças tiveram educação e bem-estar. A humanidade vive mais, a população mundial decuplicou, abolimos a escravidão, fizemos descobertas científicas inimagináveis, escrevemos obras literárias e músicas suaves, inventamos formas de explorar tanto átomos como planetas. Mas queremos entender por que expandimos o fosso entre ricos e pobres, por que exploramos crianças, torturamos prisioneiros, marginalizamos e estupramos mulheres, discriminamos minorias, entregamos o poder a incapazes, destruímos o ambiente, lutamos guerras sangrentas, alienamos e manipulamos os pobres de espírito.
A que se pode atribuir esse paradoxo? De tempos em tempos, nós culpamos o capitalismo, comunismo, a ideologia laica ou o fanatismo religioso, a competição pelo sucesso ou a renúncia à vida tranquila. Diante da contradição, somos forçados a reconhecer que não é a realidade que está em crise, e sim nosso modo de interpretá-la, os nossos modelos explicativos. Porque as categorias mentais construídas no período industrial já não dão conta de traduzir o presente, somos levados a desconfiar do futuro. No entanto, entre todos os países, o Brasil é o menos deprimido de todos, porque, apesar da violência, da corrupção, do analfabetismo e da enorme distância entre ricos e pobres, continua a ser o país mais pacífico do mundo (uma guerra em 500 anos: contra o Paraguai) e o país em que a democracia racial é maior.
Como chegamos a tamanha desorientação atual e que saída o senhor vê para ela? No século XIX, a sociedade industrial, em que a fábrica e a produção em grande escala de bens materiais eram centrais, tomou gradualmente o lugar da sociedade rural, baseada na produção agrícola e no artesanato. Após a II Guerra Mundial, rapidamente se estabeleceu uma nova sociedade, que eu chamo pós-industrial, centrada na produção de bens imateriais (serviços, informação, símbolos). Provavelmente, o impasse em que nos encontramos se deve ao fato de a sociedade pós-industrial atual não estar fundada sobre um modelo existente, um paradigma já desenvolvido e compartilhado. Isso é inédito, não ocorreu a nenhuma sociedade anterior. No século XVIII, no auge do absolutismo e da inquisição religiosa, intelectuais iluministas ousaram e propuseram um modelo de sociedade “burguesa” baseada na razão, liberdade, secularismo e igualdade, enfrentando a perseguição, a prisão e, em muitos casos, até a morte. A social-democracia nasceu dos primeiros modelos de socialistas como Owen e Bernstein. A sociedade soviética foi fundada no modelo concebido por Marx, Engels e Lenin. Finalmente, uma grande parte da humanidade - incluindo o Brasil e a Itália - tem seguido o modelo americano, mas, agora que esse modelo está em crise, para conquistar a felicidade, ou pelo menos a serenidade, deve-se buscar uma nova forma de vida. Mas um modelo não nasce ao acaso e no improviso: ele se funda sobre o espólio de todos os modelos anteriores e requer um esforço sério de análise, imaginação e pragmatismo.
“Apesar do tamanho e da diversidade geográfica, o Brasil tem uma forte homogeneidade cultural e um notável senso de identidade nacional”
Como forjar um novo modelo de sociedade que seja sólido e confiável? Esse é um esforço que precisa ser realizado por intelectuais também, não só por políticos. Sem um novo modelo social, ousado e abrangente, nós nunca seremos capazes de distinguir o que é bom e do que é mau, verdadeiro e falso. Na confusão geral, podem surgir charlatões sem escrúpulos e capazes de manipular. O caso de Trump, nos EUA, é um exemplo perigoso dessa tendência.
O senhor dedica muitas páginas ao Brasil no novo livro. Acha mesmo que o estilo de vida brasileiro é único? Eu estudei na Itália e na França. Giro o mundo por causa do meu trabalho. Adoro o Brasil. Para mim, o estilo de vida brasileiro está entre os treze modelos mais originais e interessantes de sociedade já que a humanidade foi capaz de desenvolver e testar. Apesar do tamanho e da diversidade geográfica (28 vezes maior do que a Itália) e apesar da variedade de grupos étnicos (diz-se que mais de quarenta), o país tem uma forte homogeneidade cultural e um notável senso de identidade nacional. Aproximei-me do Brasil com a humildade que merece. Viajei bastante por ele, li com admiração diligente os melhores textos de história, sociologia e antropologia de pensadores como Fernando Henrique Cardoso, Sérgio Buarque, Joaquim Nabuco, Paulo Prado e Gilberto Freyre, discuti com seus melhores intelectuais, conduzi às minhas próprias custas uma pesquisa sociológica para fazer uma projeção de como será a cultura brasileira em 2025 (Caminhos da Cultura no Brasil, Sextante, 2015). O Brasil, dizia Tom Jobim, “não é um país para iniciantes”, e estou ciente disso. Se coloco lado a lado o modelo brasileiro, o indiano, o chinês, o japonês, o greco-romano, o católico, o protestante, o muçulmano, o iluminista, o liberal, o comunista, o socialista e o pós-industrial, é porque estou convencido de que é uma cultura, material e imaterial, um tipo único brilhantemente examinado e teorizado por intelectuais brasileiros, que poderia oferecer à sociedade globalizada atual um excelente exemplo para inspirar o seu próprio caminho.
O senhor vê de fato uma cultura de tolerância étnica no Brasil? Muitos estudiosos brasileiros chamam isso de “mito da democracia racial”, que teria surgido com Gilberto Freyre. Comparamos as relações inter-raciais em dois países: o Brasil e os Estados Unidos, que se definem como portadores e guardiões planetários da democracia. Para impor essa alegada primazia, carregam seus exércitos e despejam suas bombas pelo mundo, apoiando ditaduras onde havia democracias (como aconteceu no Brasil e no Chile) e também apoiando democracias onde havia autoritarismo (caso da Alemanha, Itália e Iraque). Internamente, eles ainda têm um racismo profundo e incurável: basta pensar que em alguns estados foi proibido o casamento entre brancos e negros até o fim do século XX; ou no assassinato de Martin Luther King e de negros por policiais brancos. O Brasil nunca se propôs como campeão da democracia racial, embora o casamento entre brancos, índios e negros tenha consentimento desde sempre, o tratamento dos negros pelos brancos tenha sido sempre melhor do que o praticado nos Estados Unidos, e dezenas de grupos étnicos vivam juntos de forma mais pacífica e solidária que nos EUA. Gilberto Freyre pode ter adoçado em demasia as relações entre senhores e escravos, entre a casa grande e a senzala. Mas não há dúvida de que as relações inter-raciais no Brasil são menos conflituosas do que no resto do mundo.
No capítulo sobre o ócio, o senhor diz que o Brasil, depois da Grécia clássica, é o lugar que mais soube fazer do ócio “uma arte refinada e coletiva”. Por que diz isso? Eu respondo com um exemplo. Se compararmos o senso estético e criativo de um grande arquiteto brasileiro, como Oscar Niemeyer, com o senso estético e criativo de um grande arquiteto suíço e racionalista, caso de Le Corbusier, compreendemos a essência refinada, suave, sinuosa da arte brasileira que surge precisamente do ócio criativo. Diz Le Corbusier: "A linha reta é a diretriz ideal do tráfego; é a cura, por exemplo, de uma cidade dinâmica e vibrante. Tortuosa é a estrada do burro, reta a do homem. A estrada curva é um resultado arbitrário, o resultado do acaso, do descuido, de um fazer puramente instintivo”. Niemeyer responde: "Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura e inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, na mulher favorita, nas nuvens do céu e nas ondas do mar. De curva é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein". Quando falo de ócio criativo, não quero dizer preguiça, inércia, mas a capacidade de conjugar trabalho (com o qual produzimos riqueza) com estudo (com que produzimos conhecimento) e diversão (com que temos bem-estar, felicidade). Da música de Villa-Lobos à de Chico Buarque, das pinturas de Portinari às de Tarsila, da arquitetura de Lucio Costa à de Paulo Mendes da Rocha, quase todos os frutos da criatividade brasileira derivam do ócio.

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