Agência Brasil
Jair Bolsonaro
Direito de crítica presidencial aos outros Poderes é limitado por leis, dizem especialistas
BRASIL
A Constituição Federal e leis impõem limites ao direito de o presidente da República criticar os outros Poderes, e essas restrições são maiores do que as aplicadas aos cidadãos sem cargos políticos, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha.
O debate jurídico sobre o tema surgiu após o presidente Jair Bolsonaro compartilhar para amigos, no WhatsApp, vídeos de apoio a ato marcado para 15 de março que empunha bandeiras contrárias ao Congresso e a favor do governo.
Os especialistas afirmam também que a posição inicial de Bolsonaro, de que as mensagens que compartilha pelo aplicativo de celular são de “cunho pessoal”, não diminuiu a gravidade da conduta. Eles entendem que essa comunicação feita por WhatsApp não pode ser considerada de natureza privada.
A principal questão é se Bolsonaro cometeu o delito que no jargão do direito é chamado de crime de responsabilidade, que pode levar à abertura de um processo de impeachment.
Segundo a definição do artigo 85 da Constituição Federal, de 1988, e da lei 1.079, de 1950, podem ser classificados como crimes de responsabilidade os atos “que atentem” contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.
Pedro Estevam Serrano, advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), diz que “o cidadão comum tem direito à livre expressão e tem direito até de defender ideias extremistas, mas o presidente da República, não”.
“O presidente assume um compromisso de cumprimento da Constituição, não é um homem comum. Ele tem mais obrigações que o cidadão comum porque tem mais poder. Uma de suas obrigações é observar a relação harmônica entre os Poderes”, diz Serrano.
“O problema maior de ele ter divulgado o vídeo, a meu ver, não é propriamente o vídeo em si, é o contexto. Esse ato do dia 15 está sendo convocado como um ato contra o Congresso e o Judiciário. Ele aparentemente busca reivindicar que o Executivo tenha um poder maior, mais elevado, do que o Congresso e o Judiciário, para realizar fins que eles acreditam serem bons para a sociedade. Mas estão pleiteando a ruptura da harmonia entre os Poderes, e isso é grave”, completa o professor da PUC-SP.
Para Serrano, o envio do vídeo por Bolsonaro ainda não pode ser enquadrado como crime de responsabilidade porque ele realizou atos posteriores para minimizar sua conduta, e então a situação jurídica atual seria de apenas crime cogitado.
O especialista referiu-se ao fato de o presidente ter orientado a sua equipe de governo a evitar endossar publicamente a manifestação marcada para o dia 15 contra o Congresso, após a repercussão negativa do compartilhamento dos vídeos.
Em conversas com aliados e auxiliares, Bolsonaro disse que não está incentivando o protesto e que reencaminhou em mensagem privada um conteúdo que lhe foi enviado. O ex-deputado federal Alberto Fraga (DF), amigo do presidente, confirmou ter recebido um dos vídeos, mas afirmou não ter interpretado como incentivo.
Nesta quinta (27), em transmissão em redes sociais, Bolsonaro fez cobranças e críticas ao Congresso, mas nega que sejam um ataque.
Outros especialistas ouvidos pela Folha entendem que o crime de responsabilidade foi consumado na iniciativa do presidente de compartilhar os vídeos, endossando a manifestação do dia 15.
A presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, Luciana Andrea Accorsi Berardi, afirma que o presidente da República pode se manifestar contra determinados atos do Legislativo —por exemplo, a aprovação de uma lei com a qual o Executivo não concorde. Mas incitar a população a se rebelar contra o Congresso configura crime de responsabilidade, na avaliação dela.
O diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, especialista em direito do Estado, diz: “Uma coisa é falar ‘vamos às ruas apoiar a agenda transformadora do Brasil, convencer o Congresso de que é importante essa agenda’. Isso está no campo do jogo democrático. Outra coisa é fazer uma manifestação contra um Poder”.
Segundo a advogada e doutora em direito do Estado pela USP Mariana Chiesa Gouveia Nascimento, “há uma situação clara, que já vem se arrastando com alguns episódios, na qual o presidente desrespeita as instituições”.
“O vídeo atual o coloca na condição de salvador e convoca a população a se manifestar contra as instituições, Congresso e Supremo”, diz.
Quanto à alegação de Bolsonaro de que os compartilhamentos pelo WhatsApp são de “cunho pessoal”, a avaliação dos especialistas é que isso não serve para afastar a gravidade da conduta.
Na quarta-feira (26), Bolsonaro chamou de “tentativas rasteiras de tumultuar a República” as interpretações sobre ele ter compartilhado vídeos sobre o ato com amigos.
“Tenho 35 milhões de seguidores em minhas mídias sociais (Facebook, Instagram, YouTube e Twitter) onde mantenho uma intensa agenda de notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional. Já no WhatsApp tenho algumas poucas dezenas de amigos onde, de forma reservada, trocamos mensagens de cunho pessoal”, afirmou Bolsonaro.
Marques Neto afirma que “quando se exerce uma posição de governador, de presidente, de ministro, há o dever de tratar todas as comunicações como institucionais. Além disso, a comunicação em um grupo de WhatsApp transcende a comunicação privada”.
De acordo com Marques Neto, há duas situações que poderiam ser consideradas conversas privadas de um presidente da República.
Uma delas seria o contato pessoal com um interlocutor e a outra seria a comunicação no âmbito do círculo familiar.
Para o professor de direito da USP e especialista em impeachment Rafael Mafei Rabelo Queiroz, atualmente já “existe claramente o reconhecimento jurídico de que a comunicação por WhatsApp é comunicação com potencial de enorme impacto, pois é feita para ser viralizada”.
“É de um ingenuidade enorme alguém acreditar que um vídeo encaminhado pelo presidente da República em um grupo de amigos, que inclui aliados políticos seus, não seria passado adiante como uma mensagem que tem chancela do próprio presidente.”
Mariana tem entendimento na mesma linha de argumentação: “Sabemos que esse tipo de comunicação nunca tem o objetivo de ficar em um grupo restrito. Quando falamos em crime de internet, por exemplo, o mero envio já configura o delito, pois já conhecemos o seu grande potencial de disseminação”.
“Ele [Bolsonaro] não usou o meio adequado se queria que esse vídeo não fosse espalhado. De fato essa é uma alegação muito frágil, ainda mais se observamos a dinâmica de Bolsonaro nas mídias”, diz.
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