Robert Mugabe: já vai tarde
Após 37 anos no poder, o presidente do Zimbábue renunciou. Ele entra para a História como um Mandela às avessas
Em 1980, Mugabe representou a esperança de paz na África após um século de colonização europeia. As batalhas de descolonização costumavam se desdobrar em lutas internas pelo poder recém-conquistado. Um dos últimos países da região a declarar independência, o Zimbábue interrompeu esse ciclo de violência ao convocar eleições transparentes para o Parlamento. Mugabe foi o primeiro negro a assumir o poder, em uma ex-colônia africana, por vias democráticas. A história de Mugabe lembra a do líder sul-africano Nelson Mandela. Os dois nasceram em famílias negras de classe média. Mugabe em 1926, Mandela em 1918. Os dois foram educados em escola religiosa e frequentaram a mesma universidade. Mandela formou-se advogado. O católico Mugabe tornou-se professor e marxista. Os dois pegaram em armas contra elites locais de origem inglesa. Os dois foram presos: Mugabe por 11 anos, Mandela por 27. Os dois perderam um filho quando estavam na prisão e foram impedidos de assistir ao funeral. Os dois foram eleitos governantes de seus países com um discurso de conciliação entre a maioria negra e a elite branca. Mandela cumpriu a palavra. Mugabe, não. “Mandela foi longe demais em fazer o bem a comunidades não negras, muitas vezes à custa dos negros. Isso é ser santinho demais”, disse Mugabe sobre Mandela. “Vimos a falência de liderança no nosso vizinho Zimbábue”, disse Mandela sobre Mugabe. “Enquanto Mandela usou seus anos na prisão para dialogar com governantes brancos e derrotar o apartheid, Mugabe saiu da prisão determinado a superar a sociedade branca na base da força”, diz o historiador Martin Meredith, autor de biografias sobre os dois líderes. Mandela ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Mugabe disse que a vitória militar seria “o maior dos prazeres”. Nos anos seguintes à eleição que poderia pacificar o Zimbábue, mais de 20 mil pessoas morreram numa guerra civil. De vários grupos políticos, restou um só: o ZANU-PF, partido de Mugabe.
O discurso de ódio que ajudou a manter Robert Mugabe no poder, pouco a pouco, voltou-se contra ele e sua vida faustosa. O jornal britânico The Guardian estima sua riqueza pessoal em US$ 1 bilhão. O jornal local The Citizen afirma que ele está construindo no país uma casa com 25 quartos, avaliada em US$ 9 milhões. Em Hong Kong, sua família reclama na Justiça a posse de uma casa avaliada em US$ 5 milhões. O filho mais novo de Mugabe, Bellarmine Chatunga, publicou no Instagram uma foto com um relógio e a legenda: “$ 60 mil no pulso quando seu pai manda no país inteiro, sabe como é!!!”. A primeira-dama, Grace Mugabe, é conhecida como “primeira-compradora”, “DisGrace” ou “Gucci Grace”, por seu gosto por artigos de luxo. “O povo poderia ter se fartado de Mugabe por causa de seus próprios defeitos”, diz Jane Morley, analista da consultoria Economist Intelligence Unit, “mas Grace e seus hábitos de consumo foram o que finalmente levou o povo ao limite”.
Com a saúde debilitada, aos 93 anos, Mugabe tentou transferir o poder a Grace, 41 anos mais jovem. No início do mês, destituiu Emmerson Mnangagwa da Vice-Presidência e nomeou a primeira-dama. Parceiro de Mugabe desde a guerrilha, Mnangagwa era tido como o herdeiro natural do poder. Demitido, fugiu do país e articulou o golpe. O Exército prendeu Mugabe em casa, no dia 15, e exigiu sua renúncia. No sábado, dia 18, o presidente foi à TV e discursou por longos 19 minutos – que pareceram ainda mais longos com a habitual pronúncia arrastada. “É verdade que uns poucos incidentes podem ter ocorrido aqui e ali, mas estão sendo corrigidos”, disse. “Ergue-se do encontro de hoje um forte senso de colegialidade e camaradagem, agora unindo os vários braços do nosso aparato de segurança.” Os militares ao lado do presidente, contudo, não expressavam camaradagem. Ao contrário.
No dia seguinte ao discurso de não renúncia, o partido expulsou Mugabe e elegeu Mnangagwa seu novo líder. Na manhã da terça-feira, dia 21, os ministros de Mugabe faltaram à reunião semanal de gabinete. Foram ao Parlamento pedir o impeachment, pela acusação – facilmente comprovável em pesquisas no YouTube – de Mugabe dormir durante eventos oficiais. Horas depois, o líder que falou que jamais renunciaria renunciou por escrito. Terceiro presidente mais longevo do mundo, em 37 anos Mugabe tornou-se um exemplo de tudo aquilo que prometeu combater. Já vai tarde.
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