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Com a explosão imobiliária dos últimos anos, Shenzhen passou a ter o metro quadrado mais caro da China. Alguns dos mais importantes escritórios de arquitetura do mundo assinam suas construções (Foto: BLANCHES / IMAGINECHINA / AFP)
Mundo

O Vale do Silício chinês

A história de Shenzhen, a vila de pescadores que se transformou em uma metrópole de 12,5 milhões de habitantes, com PIB igual ao da Irlanda e que lidera a inovação no país asiático

VIVIAN OSWALD| DE SHENZHEN
16/05/2018 - 08h01 - Atualizado 16/05/2018 11h41
Há 20 anos, o jovem Hu Chao deixava seu vilarejo na província de Henan, no norte da China — como milhões ainda fazem —, em busca de uma vida melhor no Sul, mais abastado. Mudou-se para Shenzhen, cidade portuária. Era a primeira Zona Econômica Especial (ZEE) do país. Hoje é um dos símbolos das reformas e da abertura econômica promovidas em 1978 pelo então presidente Deng Xiaoping. O aniversário de quatro décadas tem sido alardeado pelo governo chinês, que acaba de anunciar novas reformas rumo ao que o presidente Xi Jinping chamou de “nova era” do socialismo com características chinesas, pouco antes de inaugurar seu segundo mandato consecutivo e de receber o aval constitucional para ficar no comando da segunda maior economia do mundo pelo resto da vida.
O fluxo de trabalhadores do norte e do resto da China atrás de empregos em Shenzhen foi imenso nesses anos. A vila de pescadores, com cerca de 22 mil habitantes até 1970, viu sua população dar um salto para quase 2,5 milhões de pessoas quando Hu nela chegou. Hoje são 12,5 milhões — o equivalente à população do Grande Rio. O ritmo de crescimento da cidade, não apenas populacional, parece não ter limite. Shenzhen pisou no acelerador nos últimos anos e registrou uma das maiores taxas de crescimento da China: 8,8% no ano passado, quando seu Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou os US$ 338 bilhões, deixando para trás Cantão e Cingapura, vizinhos com quem compete — ao que tudo indica, será maior do que Hong Kong até 2025. Trata-se de mais ou menos o mesmo tamanho da economia da Irlanda, que bateu os US$ 339 bilhões. Depois de décadas crescendo na casa dos dois dígitos, a China como um todo vem pisando no freio. A meta oficial está mantida em uma expansão de 6,5% ao ano — o novo normal, como vem insistindo o Partido Comunista, para evitar o nervosismo dos mercados. Estes, por sua vez, temem que o país já não tenha o mesmo fôlego de antes. A ideia é correr menos e garantir um crescimento mais sustentável. Um dos motivos para o ritmo mais acelerado de Shenzhen são os gastos com pesquisa e desenvolvimento, os mais elevados da China, que atingiram 4,3% de seu PIB somente no ano passado. Com o foco em inovação, a antiga vila — da qual existem poucos vestígios — se transformou em um hub tecnológico que ficou conhecido mundo afora como o Vale do Silício da China.
Hu ainda lembra quando o bairro de Huaqiangbei, onde está a famosa rua dos eletrônicos e onde encontrou a repórter de ÉPOCA em um café americano, tinha apenas uma fábrica, a Huaqian. Depois dela, vieram as outras que fizeram dali o maior fabricante de eletrônicos da Ásia. Pântanos e áreas rurais inteiras ganharam novas formas. Deram lugar a arranha-céus monumentais, muitos assinados por arquitetos de renome internacional, e um punhado deles listado no ranking dos mais altos da China e do mundo. Hu, mais do que ninguém, acompanhou o fenômeno da construção civil nesse mercado que é hoje o que mais se valoriza no país. Foi esse o setor que abriu as portas da cidade para ele e permitiu que Hu tivesse um padrão de vida muito superior à média dos chineses. Sua história se mistura com a trajetória de Shenzhen. De família pobre, desembarcou ali para trabalhar como vendedor dos imóveis que saíam do papel rapidamente, a prova do enriquecimento da cidade que se tornou uma das joias do Vale do Rio da Pérola. Não havia corretores profissionais em Shenzhen quando chegou. Lembra que o metro quadrado no bairro de Nanshan, considerado nobre, custava 4 mil yuans (R$ 2.200). Agora, sai a nada menos que 120 mil yuans (R$ 67.000), uma diferença de 2.900%. Tanta gente fez fortuna com a especulação imobiliária que o governo local impôs barreiras para quem quiser comprar mais de um imóvel. Os preços são tão proibitivos, segundo Christopher Balding, professor da Escola de Negócios de Shenzhen da Universidade de Pequim, que quem tem dinheiro prefere comprar fora da cidade ou do país.
Homem de visão, Hu soube ganhar dinheiro, mas não revela quanto lucrou. Apenas sorri e diz ter uma vida confortável, o que suas roupas de marca e seus músculos trabalhados em academia — um hábito recente entre os chineses — parecem confirmar. Empresário, sócio de uma empresa de exportação, hoje entra e sai de Shenzhen quando quer. Viaja para o exterior sempre que dá vontade e quando o trabalho permite.
Jovem desenvolvedor exibe suas criações em uma estação de “makers”, espaço de Shenzhen ocupado por engenheiros atrás de investidores para suas ideias (Foto: VIVIAN OSWALD)
Como a maioria dos “shenzhenianos”, Hu não é daqui. Essa é uma particularidade da cidade, uma das raríssimas da China que não usam as palavras “local” ou “forasteiro” (“bendiren” e “waidiren”, em chinês, respectivamente). “É uma cidade de migrantes, com gente de todas as partes da China. Por questões profissionais e pessoais, muitos vêm e vão. Muitos fazem fortuna aqui”, disse. Mas todos se sentem filhos de Shenzhen, sejam eles nascidos na China ou não. “Não há aquela competição que vemos pelo resto do país, em que alguém vai te dizer: ‘É muito bom, não é? Foi um local que fez’. Aqui, você se sente acolhido”, disse o empresário brasileiro Alessandro Nicolau, morador de Shenzhen há uma década. Muitas nacionalidades se misturam ao sotaque da cidade, que embora esteja na província de Guangdong, onde se fala o cantonês, usa mais o mandarim e o inglês como idioma franco. “Você vem para Shenzhen, você é de Shenzhen”, diz o cartaz logo no aeroporto.
Enquanto a economia chinesa pisa
no freio, Shenzhen continua a acelerar, com crescimento de 8,8% no ano passado
A rua dos eletrônicos é um dos redutos dos rostos estrangeiros, uma longa avenida de pedestres cercada de prédios por onde clientes e engenheiros do mundo inteiro passam apressados, dividindo o espaço com os policiais que fazem a vigilância do local de bermudas, para enfrentar o clima quase tropical, montados em seus segways — veículo individual com uma pequena prancha para os pés e duas rodas paralelas. O entra e sai é contínuo. Centenas de pequenas lojas com tudo o que se pode imaginar, de leds a pequenos aparelhos e componentes eletrônicos, compartilham a área com estúdios e fábricas. A diversidade é tamanha que deu fama a Scotty, um americano que ficou conhecido por viajar até Shenzhen para provar que poderia montar seu próprio iPhone 6S com a ajuda dos vendedores de peças e com os engenheiros de plantão no mercado local. Ele conta a experiência em um vídeo em seu canal de Youtube. “Visitar Shenzhen, é como visitar o futuro!”, disse. Sua história é vista como motivo de orgulho para os shenzhenianos. É esse espírito que faz da cidade uma Meca para aqueles que têm uma ideia na cabeça. Foi assim que se tornou também o berço chinês de um novo conceito de profissionais, originado nos Estados Unidos: os makers. Inicialmente, eram apenas diletantes que faziam do ócio criativo a desculpa para criar. Mas se tornaram homens de negócios, categoria tão apreciada na China, que vê nesses inventores de engenhocas do século XXI o futuro.
“Isto aqui é o paraíso dos engenheiros. Temos capital, temos todos os equipamentos e o espaço para produzir”, afirmou Saw Yee Ping, jornalista de Hong Kong, que trabalha com a conexão entre makers, clientes e o mercado para a Hong Kong Innovation Services (HKIS), uma estação de makers que conta com o apoio integral do governo chinês. “Sou uma superconectora!”, disse ela, pouco antes de exibir o imenso peixe-robô de design coreano, de utilidade duvidosa, que custa US$ 80 mil a unidade.
Do outro lado da rua, os concorrentes, da empresa Trouble Makers, criaram outro espaço criativo para quem desembarca em Shenzhen atrás de um sonho. “Tudo é possível”, disse Henk Werner, o dono do lugar. Jovens chineses e de outros países se instalam ali pelo tempo que for necessário. Não tem dinheiro? Sem problemas, porque não é necessário pagar aluguel nem luz para montar seu estúdio. Há apenas o compromisso de que, se o protótipo for para a fábrica e encontrar o cliente, o dono da ideia paga 15% de seus ganhos para a Trouble Makers. Henk disse que precisa que 20 startups funcionem ali por três meses para que seu negócio gire. O americano David Henning saiu de Atlanta, sua cidade natal, quatro anos atrás. Trabalhava com Hot Rods, carros antigos “turbinados”. Foi parar na China por gostar de viajar. Ia passar três semanas. Acabou pedindo demissão do emprego e hoje é sócio do ex-chefe, que continua nos Estados Unidos. Ele não é engenheiro de formação, mas usa sua capacidade de desenvolver os motores e alterações nos automóveis para criar outras coisas na Trouble Makers. Tem 12 projetos em andamento, entre eles uma churrasqueira a carvão controlada pelo telefone celular — acessório mais útil aos americanos, que preparam churrasco com cozimento de até dez horas, do que aos brasileiros.
Por meio dos makers, o governo de Xi Jinping pretende dar o grande salto tecnológico da “nova era”. Seu habitat são essas estações de makers, às vezes andares inteiros de um prédio, subdividas em pequenas salas, com uma área comum descontraída e com cantinas, cafés, varandas, mesas de sinuca e pingue-pongue, onde essas cabeças que não param de criar se encontram para trocar experiências e fazer seu “guanxi” (ou rede de contatos, uma das primeiras palavras que quem quer entrar no mundo dos negócios chinês deve aprender). Muitas delas contam com algum tipo de subsídio do Estado. “E esses endereços são muito valorizados hoje”, destacou Hu.
A cidade está na rota dos farejadores de novidades de sites de compras como a americana Amazon ou a chinesa Taobao. Os olheiros dessas companhias vão atrás de gadgets ou boas ideias com potencial para incrementar suas vendas on-line. Encontram fabricantes, pedem uma adaptação aqui ou ali para agradar aos clientes e até se oferecem para fazer embalagens mais apropriadas ou atraentes. É exatamente isso o que querem os makers: que seus produtos sejam descobertos. Muita gente vive de fazer essa ponte entre eles e o mundo exterior. Um dia depois de encontrar a reportagem de ÉPOCA, o chinês Alex, o nome ocidental escolhido por ele, pediu demissão do emprego de relações públicas da estação de makers onde trabalhava até a véspera. Achou que teria mais futuro se encontrasse público para um novo modelo de skate elétrico numa fábrica a uma hora do centro da cidade. O dono da ideia, Sheng, não fala inglês, mas Alex fala por ele.
Sun Lian Sheng, ou Tony, como prefere ser chamado, tem 35 anos. Veio de uma província remota no nordeste da China há seis anos. Resolveu usar a fábrica que abriu anos atrás para desenvolver skates. “Não tinha tempo de brincar de skate quando criança”, contou. É sua primeira criação. Antes, fornecia hoverboards — pranchas que flutuam sobre energia magnética — e segways, atendendo a encomendas de fora e de dentro da China. “Ganhamos experiência. Decidi me concentrar no skate. Quero oferecer ao mundo um novo meio de transporte para ir ao trabalho”, disse. O produto, segundo ele, foi testado muitas vezes e teve vários protótipos antes de chegar à forma final. “Parece um skate normal, mas com um design muito legal. Não se vê o hardware. Nosso fornecedores são de qualidade internacional”, disse Sheng. Essa é uma frase que se ouve com frequência em Shenzhen. Isso porque nem tudo o que é feito ali oferece a desejada qualidade internacional. Há muitos produtos falsificados, os chamados copycats. Empresas de dentro e fora da China recorrem à variedade dos componentes disponíveis em Shenzhen e à mão de obra especializada para montar telefones, caixas e outros produtos exatamente como os de marcas conhecidas, porém bem mais baratos. Há até eufemismos usados por quem é da área para evitar a palavra “cópia”. São os “acréscimos mínimos” ou os “produtos ligeiramente mais evoluídos”.
Isso explica por que empresas grandes ou pequenas guardam a sete chaves os segredos de seus negócios. Nas graúdas, os funcionários não podem frequentar as fábricas com seus telefones ou suas câmeras. Shenzhen é o quartel-general de algumas das principais empresas de tecnologia da China, como a BYD, a maior fabricantes de baterias recarregáveis do mundo, que lançou um carro elétrico híbrido em 2011; ou a Huawei, uma das maiores fabricantes de equipamentos de comunicação; e a Tencent, a gigante da internet, que produz games, aplicativos on-line e software, além de ser dona do WeChat (um cruzamento de WhatsApp e Facebook anabolizado), que tem nada menos que 900 milhões de usuários ativos. Também estão baseadas em Shenzhen a ZTE, a gigante das comunicações, e a DJI, maior fabricante global de drones civis.

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