MUNDO
América Latina: duas décadas de absurdos
Nos últimos 20 anos, a América Latina não conseguiu escapar de sua sina de continente flagelado pelas demências dos governantes de plantão
Na política, um absurdo não é um obstáculo, dizia Napoleão Bonaparte na França do início do século XIX. Esse axioma se aplica também à América Latina dos últimos 200 anos. Frondosa em absurdos por parte de governantes e opositores, civis ou militares, a região superou seus próprios recordes na matéria nos últimos 20 anos. A América do Sul passou das mãos dos populistas de direita, como o peruano Alberto Fujimori e o argentino Carlos Menem, às mãos dos populistas de esquerda como o casal Kirchner da Argentina e o venezuelano Hugo Chávez.
Na América Central, o marxista guerrilheiro sandinista Daniel Ortega, que implementara a reforma agrária ao governar a Nicarágua nos anos 1980, voltou ao poder nos primeiros anos do século XXI, mas reconfigurado como conservador alinhado com a cartilha do FMI. Confiscou terras dos lavradores que beneficiara em seu primeiro governo e as repassou a um megaempresário chinês.
Cuba, ícone da revolução socialista latino-americana, passou do comunismo ortodoxo a uma gradual abertura econômica desde 2010. Nos últimos cinco anos, o peso do setor privado cresceu e passou a representar 30% da economia da ilha caribenha. O país reinaugurou campos de golfe fechados pela revolução nos anos 1960 e se abriu para produções de Hollywood e desfiles da Chanel. “Somos marxistas-chanelistas”, afirmam os cubanos ao se referirem com ironia à “modernização econômica”. Na política, porém, Cuba continua fechada, com repressão aos dissidentes, apesar de a efígie do governante ter sido atualizada: aposentou-se Raúl Castro, sucedido por Miguel Díaz-Canel. Saíram de cena os militares octogenários de Sierra Maestra e entraram os tecnocratas civis.
Nos últimos 20 anos, a América Latina foi pródiga em “panqueques” (panquecas), expressão hispano-americana para os vira-casacas da política. Um dos casos é o de Hugo Chávez. Em 1998, antes de Chávez chegar ao poder, a esquerda regional o encarava como um “milico aventureiro” que tinha o respaldo dos neoliberais Menem e Fujimori. Mas, ao tomar posse como presidente em 1999, confiscou empresas, intimidou a oposição e tentou — sem sucesso — transformar a Venezuela num ator com influência regional. Chávez, morto em 2013, foi sucedido por Nicolás Maduro. De lá para cá, a Venezuela mergulhou na pior crise econômica de sua história e pode encerrar este ano com uma inflação de 13.000%.
Ao longo da última meia década, Maduro prendeu opositores, anulou o Parlamento de maioria opositora, fechou meios de comunicação não alinhados com seu governo e militarizou o país. Tudo isso gerou uma diáspora de 4 milhões de venezuelanos que partiram do país. No domingo dia 20, Maduro foi reeleito presidente em eleições feitas sob encomenda para o líder chavista. Em protesto, a maioria do eleitorado — 54% — não compareceu às urnas. Apesar de ter sido eleito com apenas 6 milhões de votos (de um total de 20,5 milhões de eleitores), Maduro celebrou “uma contundente vitória”.
Em 1998, a América Latina encaminhava-se para encerrar uma década de governos neoliberais na região. Boa parte desses governos, depois de produzir imensos déficits fiscais e manter estruturas clientelistas, terminou mal o mandato. Alguns, mergulhados em crises, nem sequer os concluíram. Em vários casos, foram sucedidos por governos de esquerda, embora com marcas fortes do “capitalismo de amigos”, toques de anacrônico conservadorismo moral e fobia pela globalização. Dessa forma, a América Latina acumula 20 anos de fracassos de governos de esquerda e de direita.
O caso mais emblemático de instabilidade foi a Argentina, que em apenas 20 anos passou pelas presidências de Menem, Fernando de la Rúa, Adolfo Rodríguez Saá, Eduardo Duhalde, Néstor Kirchner, Cristina Kirchner e Mauricio Macri. Em 1998, o peronista Menem estava terminando de privatizar o que ainda restava das estatais argentinas, boa parte delas criada pelo fundador do peronismo, Juan Domingo Perón. Nessa empreitada de passar tudo às mãos privadas, Menem teve o respaldo enfático (e crucial) do também peronista casal Kirchner. Ao chegar à Casa Rosada, os Kirchners, seguindo a tradição de flexibilidade do peronismo — de se adaptar a todas as conjunturas —, iniciaram um processo de reestatização de parte das empresas privatizadas com seu próprio apoio anos antes.
Ao longo destes 20 anos, a América Latina foi cenário de diversas modalidades de encerramento antecipado de mandato presidencial. No ano 2000, o Equador foi palco de revoltas populares provocadas pelo caos gerado pela desvalorização da moeda. O presidente Jamil Mahuad foi forçado à renúncia por setores militares, sindicais e indígenas. Seu vice, Gustavo Noboa, completou o mandato. O sucessor, Lúcio Gutiérrez, em meio a uma crise política e rebeliões populares, abandonou em 2005 o palácio presidencial. Isso levou o Parlamento a decidir sua remoção com o argumento de “abandono do cargo”.
No Paraguai, em 1999, depois do assassinato do vice-presidente Luis María Argaña, a Câmara de Deputados aprovou o impeachment do presidente Raúl Cubas Grau. Seu sucessor, Luis González Macchi, foi alvo de duas tentativas de impeachment — em 2002 e 2003. Apesar de envolvido em casos de corrupção e sem respaldo político, ele chegou ao final de seu caótico mandato. Outro presidente, o ex-bispo Fernando Lugo, sofreu em 2012 um processo de impeachment aprovado por seus próprios aliados do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA). Nas eleições presidenciais e parlamentares de abril deste ano, Lugo e o PLRA tinham se tornado amigos novamente e formaram uma nova coalizão — que perdeu as eleições para o Partido Colorado.
A América Latina foi o cenário de diversas modalidades de encerramento antecipado de mandato presidencial
No Peru, em 2000, Alberto Fujimori renunciou em meio a uma série de escândalos de corrupção. O Congresso, porém, não aceitou sua renúncia — enviada do Japão por fax — e decidiu declará-lo com “incapacidade moral permanente”, determinando assim que a cadeira presidencial estava vazia. Vizinha do Peru, a Bolívia foi assolada em 2003 por uma grave crise social e política. Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou depois de 14 meses no poder. Seu vice, Carlos Mesa, assumiu a Presidência do país, mas, em junho de 2005, também renunciou depois de fortes convulsões sociais. A estabilidade política veio com Evo Morales, eleito em 2005 e reeleito em 2009 e em 2014.
Desde a virada do século, o único presidente removido com o uso de força militar ou policial foi o hondurenho Manuel Zelaya, de esquerda, em 2009, enviado para o exterior de pijama — em 2002, Hugo Chávez foi preso durante um golpe militar, mas voltou ao poder. Na ocasião, o Parlamento hondurenho não dispunha de uma lei de impeachment e os rivais de Zelaya tiveram de improvisar posteriormente explicações jurídicas para a ação. Um dos protagonistas da derrubada de Zelaya foi Orlando Hernández, de firme postura antirreeleição. Ao chegar ao poder, Hernández, de direita, mudou de ideia e pressionou a Justiça para conseguir a autorização para ser novamente candidato. E assim foi recentemente reeleito em eleições cravejadas de irregularidades.
Nestes 20 anos de descalabros latino-americanos, a saída do poder mais cinematográfica e tragicômica foi a fuga às pressas da Casa Rosada do argentino Fernando de la Rúa no dia 20 de dezembro de 2001, enquanto nas ruas de Buenos Aires acumalavam-se mais de 20 mortos em choques com a polícia. Famoso por ser distraído, De la Rúa se esquecera de assinar a renúncia. No dia seguinte, voltou ao palácio presidencial para colocar sua rubrica. Na ocasião, foi flagrado pelo fotógrafo presidencial abrindo uma gaveta de seu escritório para pegar seus pertences, entre os quais estava uma caixinha de anabolizantes sexuais que ostentavam na embalagem a figura de vários gnomos cujos gorros iam adquirindo gradualmente uma inclinação de 45 graus, com óbvias alusões ao sexo masculino.
Em meio à pior crise da história do país, essa era a prioridade de De la Rúa. A fotografia bem poderia ilustrar o discurso que em 1982 o escritor colombiano Gabriel García Márquez pronunciou ao receber o Prêmio Nobel de Literatura. Na ocasião, o autor de Cem anos de solidão afirmou que “a independência do domínio espanhol não nos colocou a salvo da demência dos governantes de plantão”.
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